Vale transformar estudantes em produtos para termos uma educação mais digital?

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O Estado de São Paulo tem sido alvo de diversas polêmicas que puseram em jogo considerações sobre a proteção de crianças e adolescentes no uso de plataformas de educação. Quando começávamos a escrever este artigo, que pretendia discutir as implicações da adoção de material integralmente digital para alunos do 6.º ao 9.º anos da rede pública estadual de São Paulo a partir do ano que vem, deparamo-nos com a notícia de que um aplicativo educacional foi instalado, automaticamente e sem autorização prévia, em celulares de estudantes, responsáveis e professores da rede em diferentes regiões do Estado.

Essas são duas medidas que, para além de se referirem ao processo de digitalização do ensino, nos desafiam a refletir de forma mais profunda sobre iniciativas que promovem a privatização, a vigilância e a exploração de dados de estudantes a partir da suposta intenção de promover a educação digital no Brasil.

A primeira notícia preocupante se refere ao fato de o governo paulista anunciar que não iria aderir ao Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD) e que ofereceria aos estudantes dos anos finais do ensino fundamental apenas a versão digital de seu próprio material didático (medida que foi revista após críticas de especialistas, profissionais da educação e movimentos sociais representantes de professores e estudantes).

Para além de ampliar os gastos para a área, a decisão foi tomada sem qualquer diálogo com a rede, sem considerar a conexão com a prática pedagógica e os devidos compromissos com a qualidade dos materiais, e sem levar em consideração os prejuízos, tanto para o aprendizado e o desenvolvimento integral dos estudantes – em etapa peculiar de desenvolvimento biopsicossocial – quanto para o trabalho dos professores em sala de aula.

Além disso, a medida tem potencial de agravar as desigualdades já observadas entre estudantes que têm menor ou maior acesso a equipamentos e a uma internet de qualidade, e não considerou o desenvolvimento integral dos estudantes, potencialmente prejudicado com o uso excessivo de telas. Estima-se, por exemplo, que apenas 20% da população brasileira têm acesso a internet de qualidade, com evidente desigualdade com relação à classe social, à raça e, no caso de estudantes, à matrícula em escolas públicas ou privadas.

Nesse sentido, a secretaria paulista desconsiderou os riscos de aprofundamento das disparidades – já que muitas escolas nem sequer dispõem de dispositivos digitais, como computadores ou tablets, e a precariedade ou ausência de conexão pelos estudantes, que, em muitos casos, precisam dividir com os familiares o uso de aparelhos celulares com pacotes de dados limitados.

Já a segunda notícia – da instalação indevida e não autorizada de aplicativo da Secretaria Estadual de Educação em celulares de estudantes, responsáveis por estudantes e professores da rede – aponta para a violação do direito de crianças e adolescentes com o descumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e com a promoção da privatização do direito a uma educação integral, inclusiva e democrática em detrimento de interesses políticos, econômicos e ideológicos.

Impulsionadas pela pandemia do coronavírus e pela necessidade de isolamento social e afastamento das escolas, medidas voltadas à digitalização da educação aumentaram exponencialmente, sem considerar os devidos cuidados na contratação de serviços, na mediação das atividades com os estudantes e na criação de conteúdos e práticas que pudessem, de fato, fortalecer o uso do ambiente digital para ampliar novas formas de aprendizado, potencializar o acesso a ferramentas inclusivas e ampliar a conexão entre professores e alunos, conforme previsto no Comentário Geral n.º 25 sobre os Direitos das Crianças em relação ao Ambiente Digital.

O novo Relatório Mundial de Monitoramento da Educação 2023 (GEM 2023), publicado recentemente pela Unesco, por exemplo, aponta que ainda existem grandes lacunas quanto a evidências rigorosas e imparciais sobre o uso da tecnologia na educação e que, por isso, é fundamental que países desenvolvam estratégias de implementação, a médio e longo prazos, que sejam apropriadas para seus contextos, compatíveis com objetivos de equidade e inclusão e conscientes das consequências econômicas, sociais e ambientais que podem acarretar. São dimensões fundamentais a serem consideradas pelas gestões públicas antes de assumirem compromissos financeiros ligados à digitalização da educação, ainda que quando “bem intencionada”.

No que se refere à contratação de aplicativos e plataformas digitais para a educação, é fundamental que seja considerada, também, a defesa de direitos de estudantes contra medidas que promovam a vigilância e a exploração comercial em suas escolas e ambientes familiares. Embora essas plataformas possam ter representado alternativas possíveis diante da instabilidade causada pela pandemia de covid-19, o uso exclusivo do ambiente digital – como proposto inicialmente pela Secretaria de Educação –, a coleta excessiva e o uso ilegal dos dados pessoais violam os direitos de crianças e adolescentes.

A pesquisa Como eles ousam espiar minha privacidade?, divulgada pela organização Human Rights Watch (HRW) em maio do ano passado, evidenciou que a maioria dos serviços de tecnologia educacional (EdTechs) endossados por 49 países, incluindo o Brasil, violou os direitos de crianças e adolescentes durante a pandemia, coletando indevidamente seus dados pessoais, muitas vezes para o direcionamento ilegal de publicidade.

Dos 163 serviços de EdTech analisados, 89% vigiaram ou poderiam vigiar crianças e adolescentes, inclusive fora do horário escolar. Muitas plataformas de educação coletaram informações sobre os estudantes como, por exemplo, de onde são, suas preferências e que tipo de dispositivo suas famílias poderiam pagar para que pudessem seguir com o ensino online.

Um destes serviços investigados foi uma plataforma desenvolvida pela própria Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, o Centro de Mídias da Educação de São Paulo. De acordo com a Human Rights Watch, a plataforma coletou dados de estudantes em São Paulo de forma indevida, utilizando recursos analíticos das próprias empresas Google e Microsoft – empresas que podem utilizar dados dos estudantes para anúncios direcionados com base na navegação na internet. Neste ano, o estudo foi atualizado e constatou que o Centro de Mídias de Educação continuava coletando dados indevidamente de estudantes.

É, também, gravíssimo perceber que o rastreamento do padrão de navegação dos estudantes, utilizando técnicas projetadas para a publicidade, extrapolava o uso das plataformas educacionais para monitorar todo o uso da internet, de forma completamente invisível aos usuários.

O caso acabou chamando a atenção da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que abriu procedimento administrativo para analisar possíveis violações ao direito fundamental dos estudantes paulistas à proteção de seus dados pessoais. Além da ANPD, a Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude do Estado de São Paulo anunciou, no dia 17 de agosto, a abertura de investigação sobre o caso.

Apesar das graves denúncias associadas ao caso acima relatado, a instalação não consentida do aplicativo Minha Escola demonstra, mais uma vez, que a LGPD segue sendo desrespeitada pela Secretaria Estadual de Educação de São Paulo. Isso convoca não só o governo paulista, mas também os demais entes da Federação e toda a sociedade a repararem os danos causados e a se comprometerem com o melhor interesse de crianças e adolescentes no ambiente digital, garantindo benefícios educacionais que não comprometam a privacidade, a segurança e o direito a uma educação equitativa, de qualidade e inclusiva às múltiplas infâncias brasileiras. Afinal, crianças e adolescentes devem ser reconhecidos como sujeitos de direitos, e não como produtos.

Publicado por Estadão em 17/09/2023.

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