Um olhar de professor para professor

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Em cursos, palestras e seminários de que participa pelo país, a professora e escritora Nilma Gonçalves Lacerda vem debatendo o papel do professor e reforçando a necessidade de que a reflexão sobre as condições do magistério seja feita pelo próprio educador. “Venho buscando a face do professor perdida no espelho. Cecília Meireles tem um poema belíssimo em que diz ‘Eu não tinha esse rosto de hoje, assim tão triste’. E no final ela pergunta ‘Em que espelho ficou perdida a minha face?’. Eu quero responder a isso. Quero que a professora e o professor possam perguntar se o seu rosto está perdido. Se está, vamos procurar, vamos restaurar. Vamos encontrar esse rosto e ver o que queremos fazer com ele – uma plástica, uma maquiagem, lavá-lo bem com água e sabão“, explica a professora. Com larga experiência e atuação na escola pública no ensino da Língua Portuguesa e da Literatura Brasileira, Nilma Lacerda já deu aulas em todos os níveis de ensino, desde a escola primária, até a pós-graduação, e cursos de formação continuada a professores. Seja qual for o grau de instrução ou faixa etária dos alunos, a escritora se dedica à tarefa de formar leitores. “Você não precisa ser dogmático, taxativo, não precisa ser um chato para levar alguém a ser um leitor apaixonado. Você comenta o livro que leu, indica, e assim você está formando leitores conscientes, críticos e apaixonados. A minha vida tem sido isso e eu continuo a formar leitores“, diz.

A relação de Nilma Lacerda com a literatura é a de quem a estuda, a ensina, mas também a produz, sendo autora de ensaios, artigos e obras de ficção para crianças e adultos. Com especialização de conhecimento em literatura para crianças e jovens, a professora também dá consultoria ao Programa Nacional de Incentivo à Leitura (Proler) e à Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Veja a entrevista:

Folha Dirigida – Qual o objetivo dos cursos e palestras que desenvolve com os professores?

Nilma Lacerda – Procuro levar o professor à reflexão do que ele representa na sociedade. Ao mesmo tempo em que está sendo destituído deste papel, ele é cada vez mais implicado nele. O professor hoje não tem muito valor. De um lado, não tem muito poder, mas por outro, a sociedade cobra e espera que esse professor realize alguma mudança, algum deslocamento, algum tipo de renovação. Ainda existe essa confiança da sociedade que entrega o seu filho a uma escola, a um professor, sobretudo nas escolas públicas. E paradoxalmente há um descrédito, sobretudo em relação à escola pública, porque há uma trama contra o público neste país. Há sempre um sentimento de que o público não vale, não atende tão bem, não tem o mesmo mérito daquilo que é privado, daquilo por que eu pago. As pessoas não se dão conta de que elas pagam pelo público. Todo mundo paga pelo público e o público precisa ser de responsabilidade e atuação de todos. E se a educação anda ruim, o professor é ruim, o professor é que não faz bem o seu trabalho. Ninguém reflete sobre as condições do trabalho dele, sobre baixos salários, sobre a desautorização que pesa sobre esse professor. Vivemos em um momento em que, no ensino privado, o aluno é um cliente, ele paga e tem que ser respeitado como cliente, porque o cliente sempre tem razão. Isso me incomoda demais. Assim, os cursos e encontros com o magistério têm o objetivo de levar o professor a se olhar, e a ver no espelho o melhor retrato dele. Se conseguirmos fazer isso eu já vou estar satisfeita.

Folha Dirigida – A senhora percebe a necessidade de que seja feita uma reflexão sobre o exercício da profissão?

Nilma Lacerda – Essa reflexão precisa ser feita pelo próprio professor. Porque em geral essa reflexão existe, mas chega muito empacotada, muito fechada. Quando houve a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, cada professor recebeu uma caixa com alguns parâmetros. O professor nunca é o remetente de uma correspondência. Ele acaba sendo o destinatário. Eu quero o professor sendo remetente. E você só pode ser remetente, quando é o autor do seu discurso, quando você se reconhece alguém que tem uma opinião e que precisa colocar essa opinião em alguns lugares. Esta reflexão visa a isso. E para isso eu quero dar alimento. Um alimento acadêmico, um alimento artístico.

Folha Dirigida – Quando a senhora diz que quer que o professor veja o seu melhor retrato, é possível definir o perfil “ideal“ do professor?

Nilma Lacerda – Não penso em um perfil ideal. A melhor imagem comporta aspectos negativos, que têm que ser conhecidos para serem revistos e melhorados. Eu penso sobretudo em um retrato bonito. Eu quero o professor, a professora, se vendo bonito e bonita neste espelho, se vendo autônomos, se vendo remetentes de uma carta, se vendo não só como executores de um projeto educacional que chega pronto e fechado, mas como mentores, revisores, atores fundamentais no processo educacional. O professor precisa revitalizar seu amor próprio, se olhar e ter orgulho da sua profissão, do seu trabalho. Venho buscando a face do professor perdida no espelho. Cecília Meireles tem um poema belíssimo em que diz ‘Eu não tinha esse rosto de hoje, assim tão triste’. E no final ela pergunta ‘Em que espelho ficou perdida a minha face?’. Eu quero responder a isso. Quero que a professora e o professor possam perguntar se o seu rosto está perdido. Se está, vamos procurar, vamos restaurar. Vamos encontrar esse rosto e ver o que queremos fazer com ele – uma plástica, uma maquiagem, lavá-lo bem com água e sabão. Os professores que fazem cursos comigo, é que vão responder a isso, eu não tenho resposta. Eu quero realmente que encontremos o melhor, mas vamos encontrar juntos e no final vamos ver o que fazer com este rosto que a gente encontra.

Folha Dirigida – Qual a importância de que se trabalhe melhor a formação do professor? Quais as principais deficiências que percebe na formação do professor?

Nilma Lacerda – A sociedade brasileira sofreu uma grande perda com a revogação da lei que obrigava o professor a ter formação de nível superior. Quando se subtrai a formação superior para o professor, investimentos são retirados, exigências são retiradas e valor é retirado do trabalho e da figura do professor. Mesmo com todos os problemas que o Brasil tem, era possível que os professores tivessem essa formação. Não era para se realizar em dois anos, quatro ou cinco anos, mas é uma meta possível. Vemos que o professor de escola pública está querendo complementar a sua formação e há uma reivindicação muito grande para isso. O magistério é a classe profissional que mais se preocupa com a formação continuada. O meu trabalho na formação continuada é justamente o de levar mais suporte a esse professor, falar de uma bibliografia recente, porque sou alguém que vive em uma metrópole e tem acesso a informação, que tem acesso a bibliografias, alguém que pode comprar livros, que pode ir a conferências com convidados internacionais ou de outras universidades, alguém que se desloca pelo país e vê o que está acontecendo e pode estar trocando isso, estabelecendo uma rede. Como estou nessa locomoção constante, eu posso realmente estar continuando a rede, levando aos professores com que tenho contato as informações a que estou tendo acesso. E até confirmar as ações que o professor está fazendo. No Congresso de leitura de Campinas, que reúne 3 mil professores do país todo, o professor está lá para peguntar: “O que eu faço na minha turma está certo? É por aí que devo ir? Eu vou obter o melhor resultado desta forma?“. O meu engajamento em projetos de formação continuada do professor visa exatamente a trocar com este professor e aprender com ele, que ensina com muita competência o próprio trabalho que está fazendo.

Folha Dirigida – A senhora, além de professora, é escritora. Existe alguma relação entre estas duas atividades: ensinar e escrever? O que veio primeiro – a formação como professora ou escritora?

Nilma Lacerda – Primeiro eu me acreditei professora, para depois me descobrir escritora. Eu sou professora da Língua Portuguesa e de Literatura Brasileira, então vou me ocupando da língua, da linguagem, ensinando o menino a escrever. É claro que lidando com a escrita de uma forma profissional, isso talvez tenha permitido me olhar com mais clareza. Talvez. Eu fazia muitos jogos com meus alunos, lia muita literatura, conversava muito com eles e isso alimentava e alimenta a minha escrita até hoje. Mas eu acredito que a pessoa que eu sou, estivesse na profissão em que eu estivesse, estaria escrevendo. Como professora, a escrita ganha competência ensaística, para o cotidiano, para o exercício político, digamos assim. Ano passado fiz uma oficina na Secretaria Municipial de Educação do Rio de Janeiro, com os coordenadores pedagógicos, que teve o nome “Eu não gosto de ler e tenho horror de escrever“. Dei esse título muito espontaneamente, depois achei horrível e agressivo, mas não me deixaram alterar, porque acharam muito bom. Fazendo a oficina perguntei quem dizia essa frase e a primeira resposta foi: o aluno. Logo, começaram a aparecer aqui e ali, as pessoas dizendo que era o professor. Os professores acabam não reconhecendo que, em grande parte, não gostam de ler, e têm horror de escrever, porque a escrita é a exposição da subjetividade e quando se expõe, a pessoa corre riscos. Por isso a nossa escola nunca trabalhou bem a questão da escrita. Isso está sempre sendo objeto de estudo, mas ainda não está bem resolvido. Acho que talvez em lugar nenhum esteja plenamente resolvido, porque é uma questão existencial, uma questão filosófica e social.

Folha Dirigida – Por que a escola não trabalha bem a escrita? O livro não é valorizado na formação do estudante?

Nilma Lacerda – Muita coisa está se fazendo para o acesso das crianças e dos jovens ao livro de qualidade. Mas o contato com o livro vem de uma valorização. O livro é um objeto cultural. A leitura não é um ato espontâneo. Ela é um ato de muita dificuldade, ela requer uma capacitação, ela requer sofisticação. Este valor está em criação na sociedade brasileira de uma forma que, embora mais evidente hoje, ainda é lenta para as nossas necessidades. A leitura vai te permitir uma análise crítica da realidade e a intervenção nessa realidade, a criação de caminhos para causar deslocamentos nesta realidade. E isso está em curso ainda na sociedade brasileira. Nós precisamos, por exemplo, uma questão pela qual estou me batendo e refletindo: o professor precisa de tempo para ler. E esse tempo vem com salários melhores.

Folha Dirigida – O que significa dizer que a leitura não é espontânea?

Nilma Lacerda – A família e a escola precisam transmitir à criança o valor de um livro, e esse ato não é da ordem da natureza, não é como beber água, que você tem necessidade e é um ato animal. Eu sempre digo que a espécie humana não precisa da arte para viver. A arte é supérflua. E eu sempre assustava muito os meus alunos de literatura porque eu começava dizendo isso. Para viver, a espécie humana precisa do abrigo, do alimento, da água. E no entanto, tendo abrigo alimento e água, se cria um pote para pegar água na fonte e transportar até onde estamos. E vamos fazer um desenho nele, vamos fazer uma alça mais bonita, vamos usar um porque é mais bonito que o outro, e aí nós já estamos falando da necessidade de estética, da beleza, da criação, da presença do sujeito nestes objetos de uso cotidiano. É a arte começando a se manifestar. Se a arte vai surgindo como um produto do humano, então a literatura e o livro são produtos culturais. E é preciso ir transmitindo essa herança, esse conhecimento à comunidade, às pessoas. Você aprende muito mais rapidamente a andar ereto, a falar. O ato de ler é bastante elaborado, sofisticado, ele é um ato difícil, ele precisa ter a sustentação junto à criança de pessoas adultas e em quem ela reconheça um afeto e uma autoridade, para que essas pessoas lhe mostrem a beleza que está nesse ato, a força, a necessidade. Muitas vezes há essa concepção errônea do ato da leitura e da escrita. A leitura não é fácil, não é tão simples, não é natural. Precisa ser ensinada e muito bem ensinada para que a criança se torne leitora e também escritora do seu desejo, da sua vontade, das suas angústias e dos seus prazeres.

Folha Dirigida – Como e onde se forma a criança leitora? O papel da família é definitivo? O papel do professor é definitivo?

Nilma Lacerda – Sempre é difícil falar em definitivo. O ideal é que a formação da criança leitora se fizesse na família. Assim como deveria transmitir valores de convivência, deveria ter como projeto ético, apresentar o livro à criança, através de histórias agradáveis, de histórias que são uma grande herança da humanidade, como Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho. A família que coloca desde cedo o livro como um objeto do universo da criança, está mostrando ao seu filho que ali há coisas boas e prazerosas para ela. A realidade brasileira é de pobreza e privação majoritariamente. Os livros estão ausentes da maior parte das casa da sociedade brasileira, seja pela pobreza, seja pela falta de valor. Há até casas burguesas em que você não vê livros, porque não foi um valor construído. Os livros devem ser uma realidade para toda família, em todo lugar do mundo. Mas sabemos que não é assim porque a palavra escrita, a leitura, e o livro são uma forma de poder. É poder político, é poder econômico, é possibilidade de transformação, é possibilidade de questionamento, e é claro que as elites dirigentes vão sempre controlar isso, como a Igreja controlou na Idade Média o acesso aos livros, as elites vão controlar isso de uma série de formas às vezes muito sutis. Se a família, privada do acesso ao livro, não faz isso, a escola precisa assumir esse papel. E o central nesse papel é a consciência do valor das bibliotecas públicas e escolares, porque você pode nao ter o dinheiro para comprar este livro, mas precisa ter o acesso a ele garantido. O povo tem vontade, tem necessidade e precisa ter garantido este acesso. E na formação do leitor, o professor no Brasil tem um papel muito importante, e que se desempenha de uma série de formas, inclusive com um gesto simples, como o professor que anda sempre com um livro e comenta o que leu. Você não precisa ser dogmático, taxativo, não precisa ser um chato para levar alguém a ser um leitora apaixonado. Você comenta o que leu, indica, e assim você está formando leitores conscientes, críticos e apaixonados. O ato de ler é de aprendizado, ele é ensinado. E como tudo que nos é ensinado na vida, é por uma pessoa ou uma instituição que tem significado. Então você se permite aprender o que têm a ensinar para você. Foi como permiti que muitos professores me ensinassem a paixão de ler, a paixão de escrever, a paixão de ensinar e de aprender coisas com outros.

Folha Dirigida – Em sala de aula, como a senhora percebe a aceitação do jovem em relação ao livro? Fala-se muito da leitura obrigatória. Ela aproxima ou afasta o estudante dos livros?

Nilma Lacerda – Eu nunca trabalhei com leitura obrigatória e sempre formei leitores e tive grande respostas. Nunca tive problema de recusa, de resistência de meus alunos à leitura, em todos os níveis. É claro que não é todo mundo que vai ser um grande leitor apaixonado, porque aí entram as escolhas individuais. Mas é preciso garantir que todos os cidadãos tenham acesso a este aprendizado, para que façam a sua escolha. Se o aluno achar que ler dá muito trabalho, e que ele prefere ver televisão, eu tenho que acatar e respeitar isso, embora eu vá continuar a mostrar que se ele ler, ele poderá dialogar com a televisão que ele vê. Eu gosto demais de trabalhar com o jovem, porque ele é rebelde, ele é crítico, mas ele quer fazer. O jovem quer atuar no presente e no futuro. E você fica muito jovem trabalhando com ele. A turma se engajava, lia, debatia, construía textos, saía para fazer filmes, fazia cartazes, debatia com o escritor. E isso na escola pública. Trabalhei três anos na escola privada de ensino fundamental e médio e também fizemos muitas coisas com o livro. Escrevemos outros textos, debatemos, fizemos peças teatrais, fizemos excursões, sempre com o livro nos motivando. E na universidade, aos meus alunos de Literatura eu digo que eles têm que ler muito. Grande parte, eu percebia que lia por prazer. E muita gente ia confessando que ganhou este prazer em um trabalho em que fizemos, o que é um retorno muito gratificante. Mas para isso é fundamental que o professor seja um leitor apaixonado, que a leitura tenha um valor para ele, o valor desse partilhar de experiências do humano, da solidão do humano. Porque somos solitários, estamos sozinhos, por mais que tenhamos namorados, namoradas, maridos, amante, dentro de nós somos ocos. E ocos de perguntas, de buscas, de realizações, de perplexidades. Não precisamos só ter pessoas queridas em nossa volta, nos dando força para irmos vencendo estes ocos. Os livros vão trazer questões semelhantes às nossas e nos identificamos com o personagem. A literatura é um dos lugares em que o professor encontra respostas. Como o professor que enfrenta problemas perdendo alunos para o tráfico. Um texto literário pode ajudá-lo, um filme, um quadro, uma música, um rap mesmo, pode ajudar este ser humano a ir acomodando as angústias, e ir sabendo como lidar com elas.

Folha Dirigida – Que tipo de livro deve ser indicado nas escolas? Qualquer leitura é válida?

Nilma Lacerda – Qualquer leitura é válida com o mediador do lado. Muitas vezes você só consegue formar o leitor, se você reconhece a leitura que ele escolhe. Não se pode recusar a leitura que o aluno te traz. Você acha que tem que mandar toda a turma ler um livro e fazer uma prova. Por que? Por que cada aluno não pode escolher o livro que quer ler? Porque o aluno vai ler um livro e comentar com outro colega. Isso é muito mais importante do que fazer a prova, a tarefa. Se você deixa que ele fale, você mostra que é bom. É fundamental para a leitura este espaço na sala de aula. Mas como vou saber que meu aluno leu? Ele vai contar para você e para o colega o que leu. Mas, e se ele ler um livro fino? E daí? Há contos de Kafka de dez linhas que são obras-primas. Temos muito medo, porque a escola quer sempre enquadrar, fechar, disciplinar, gradear. O professor tem que estar esclarecido, apaixonado, tem que ter tempo para ler, tem que ter dinheiro para entrar na livraria e levar o livro para casa, tem que ler com paixão, reler, riscar, carregar o livro junto ao peito para o aluno ver, conversar sobre aquele livro e acatar as escolhas dos alunos. Nessa troca de conversas sobre os livros, vai haver um momento em que o professor vai poder dizer “E se todos lerem agora esse livro, para todo mundo discutir e ver o ponto de vista?“. Aquele que não quiser, você pergunta se ele que ler um outro para ver se o tema é semelhante ou diferente. Se você deixar o adolescente escolher, ele vai escolher. E ele pode até burlar no início, mas a maior parte do grupo vai se engajar, e como ele quer estar no grupo, ele vai participar também. Ele vai falar, e depois pode escrever sobre o que leu. Você vai perguntar se ele gostou do que leu e o porquê. Essas são formas muito mais produtivas, muito mais apaixonantes, que dão muito mais resultado para formar leitores que permaneçam leitores pela vida afora. Mas a escola tem muitas dificuldade de lidar com a liberdade, com o riso, com a alegria. Com liberdade se produz conhecimento no prazer, e em uma ação que se mostra concreta e com repercussões sociais, inclusive.

Folha Dirigida – Os livros para jovens e crianças devem ter algum tipo de adaptação na linguagem, como o uso de linguagem coloquial e gírias, a fim de torná-los mais atraentes? Devem ser usados livros voltados para a faixa etária do aluno ou clássicos da literatura brasileira?

Nilma Lacerda – Essa é uma questão trabalhosa. Os clássicos têm um lugar importantíssimo e têm que estar na leitura do jovem, sim. E isso começa por acatar a leitura que o jovem traz. É evidente que se você está na escola, é um professor, um formador, você vai oferecendo informações e trocas, que fazem com que o estudante vá tendo acesso à grande literatura. Porque quando vai à escola, o aluno quer ter acesso à herança da humanidade, ao que de melhor foi produzido em cinco mil anos de história escrita. É a isso que todo pai e toda mãe, por mais simples que seja, quer que o filho tenha acesso, para que ele seja autônomo na vida. Se os pais querem isso e o filho quer isso, nós temos que dar isso. E completo. Por que a minha filha que pertence à burguesia pode ler a Divina Comédia de Dante? Ela pode ler Homero e o filho do pobre não pode? Pode sim. E isso é um problema de professor. É o professor que tem que ser bem formado. E isso depende do momento em que este jovem está. Eu não sou contra as adaptações das obras que realmente sejam muito complexas. O professor pode dar um conto de Shaekespeare adaptado para o menino de 9 anos. Se ele for bem acompanhado, ele vai ter vontade de ler o original com 15 anos, com 18, com 50. Já trabalhamos Heidegger, que é um dos maiores filósofos do século XX, em uma escola municipal, com alunos pobres. E estes alunos moradores de favela dialogaram com Heidegger e escreveram sobre o que eles leram. Fizemos uma seleção de fragmentos e lemos com eles, explicando, trazendo vocabulário. E ao final o aluno pode entender perfeitamente o que Heidegger dizia naqueles fragmentos e pode inclusive analisar até que ponto aquilo que o filósofo propunha se encontrava na vida deles. Eu tenho isso escrito e publicado. Então, você vê que é possível, é apenas uma questão de clareza ideológica e decisão política. E se você realiza isso plenamente, está fazendo revolução, está dando acesso a todas as pessoas aos destinos da nação. E tem muito professor fazendo este trabalho.

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