Temos de impedir que crise de aprendizagem na pandemia vire catástrofe, diz Unesco

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No Brasil, três em cada dez jovens já consideraram, durante a pandemia, não voltar à escola ou faculdade, segundo pesquisa do Conjuve (Conselho Nacional da Juventude) lançada em julho.

Para evitar que esse movimento de evasão escolar se concretize, será necessário que as políticas educacionais sejam combinadas com políticas de renda para a juventude, já que parte desse abandono da educação se deve à busca por emprego por necessidade de contribuir para a renda familiar, avalia Marlova Jovchelovitch Noleto, diretora e representante da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) no Brasil.

“Não podemos permitir que essa crise de aprendizagem se transforme, de nenhuma maneira, em uma catástrofe de aprendizagem”, diz Noleto, que em 2018 se tornou a primeira mulher a ocupar o mais alto cargo na Unesco no país.

Criada no pós-Segunda Guerra, a organização completa nesta semana 75 anos e, conforme a diretora, tem como desafio manter a relevância e a atualidade de seu mandato, num mundo que passou nos últimos anos por um enfraquecimento do multilateralismo.

De olho nos novos tempos, a representante da Unesco destaca o papel da inclusão digital em um pós-pandemia ,em que o ensino deverá ser uma mistura de presencial e à distância.

Segundo ela, neste novo cenário, o Estado terá papel central em garantir a conectividade ― reconhecida pela ONU como um direito desde 2012 ― e fomentar políticas como o financiamento para compra de equipamentos pelos alunos.

A Unesco também realiza neste momento uma discussão entre seus 193 países-membros sobre as implicações éticas do uso da inteligência artificial. E planeja lançar, até novembro de 2021, uma declaração sobre o tema que possa ser adotada e ratificada pelos países.

Confira os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil – Quais são os principais desafios da Unesco nesse momento em que a entidade completa 75 anos?

Marlova Noleto – A Unesco foi criada em 1945, logo depois da Segunda Guerra. É uma das agências mais antigas das Nações Unidas. O mais importante desafio de uma organização que completa 75 anos é continuar importante e seguir com seu mandato sempre atual e relevante.

2020 foi um ano profundamente desafiador, porque a pandemia escancarou as fragilidades da sociedade, deixando ainda mais evidentes as nossas desigualdades. Nesse sentido, o mandato da Unesco é muito relevante, porque ele trabalha com educação e ciência, coisas em que hoje toda a humanidade está redobrando a sua aposta.

BBC News Brasil – Os últimos anos foram marcados por um certo ocaso do multilateralismo, com os Estados Unidos sob Donald Trump esvaziando organizações como a OMC [Organização Mundial do Comércio], a OMS [da Saúde] e a própria ONU. Na avaliação da senhora, a mudança de governo naquele país e a experiência da pandemia podem levar a um fortalecimento dos organismos multilaterais nos próximos anos?

Noleto – Não tenho a menor dúvida de que a pandemia reforça e muito o multilateralismo. Observe agora o que está acontecendo na busca pela vacina. Estamos trabalhando num campo que é o da cooperação internacional. As vacinas são desenvolvidas num país e testadas em outros. O próprio esforço de vacinação em massa, que demandará logística e coordenação, também é um esforço de cooperação internacional.

BBC News Brasil – Em setembro, a senhora defendeu, junto às diretoras da Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância] e da Opas [Organização Pan-Americana da Saúde] no Brasil, que a abertura segura das escolas deveria ser uma prioridade. O desafio para essa reabertura aumentou agora, com o Brasil passando por um novo aumento de casos de covid-19?

Noleto – Nós acreditamos que reabrir as escolas é uma prioridade. Mas a Unesco defende que também é uma prioridade preservar e salvar vidas. Então acreditamos num diálogo integrado entre as áreas de educação e saúde, para que se possa reabrir as escolas com segurança, ouvindo todos os atores relevantes.

BBC News Brasil – Neste momento em que há um crescimento do número de casos, é mais difícil falar em reabertura? Esse movimento pode ser adiado?

Noleto – É preciso avaliar caso a caso, localmente, para que se possa tomar a decisão mais segura para cada local. Isso significa uma conversa no nível do município. Precisamos também revisitar a infraestrutura das escolas. Ter cuidado com todos os trabalhadores da educação, não apenas os professores. Ter testagem e ambientes ventilados adequados, para que se possa reabrir as escolas em segurança.

Mas em nenhum momento recomendamos não abrir. O que recomendamos, a partir de agora, é buscar conhecer as condições de cada localidade, para fazer um retorno seguro.

BBC News Brasil – Qual é a importância da reabertura?

Noleto – As perdas educacionais deste ano foram muito significativas e precisamos lembrar que educação é um direito humano fundamental. Não podemos permitir que essa crise de aprendizagem se transforme, de nenhuma maneira, em uma catástrofe de aprendizagem.

BBC News Brasil – Estudo publicado em julho pelo Conjuve mostrou que, em meio à pandemia, três em cada dez jovens pensaram em não retornar à escola. O que precisará ser feito para mitigar a evasão escolar nos próximos anos?

Noleto – Isso é algo que nos preocupa muito. A Unesco participou dessa pesquisa com o Conselho Nacional da Juventude e a Fundação Roberto Marinho. E é evidente que parte desse abandono à escola está ligado à busca por emprego e à necessidade de contribuir na renda familiar. Os jovens estão profundamente desafiados durante a pandemia e o risco da evasão é um risco real, sobretudo para as meninas e as jovens mulheres.

Então precisamos trabalhar políticas educacionais, mas também políticas que foquem nos jovens, desenhando ações de empreendedorismo, buscando ajudá-los a permanecer na escola, ao mesmo tempo que possam contribuir na sua renda familiar. Então o desafio é muito grande.

BBC News Brasil – Com a perspectiva de que, no retorno às aulas, o ensino continue a ser híbrido entre presencial e à distância, especialistas em educação têm defendido que a inclusão digital precisa deixar de ser um serviço, para tornar-se um direito fundamental. Como a senhora avalia essa questão?

Noleto – A ONU defende que a conectividade é um direito desde 2012 e a exclusão digital nos preocupa muito. As formas de ensino à distância vieram para ficar. E teremos que ter mecanismos para lidar com isso, superando a desigualdade e buscando maneiras de atender também àqueles que não têm os equipamentos adequados, nem os pacotes de dados necessários.

BBC News Brasil – Qual deve ser o papel do Estado em prover essas soluções?

Noleto – O Estado, em todos esses temas educativos, deve buscar maneiras de minimamente compensar essa desigualdade. Quer seja trabalhando em campanhas que ampliem a conectividade, ou ainda buscando fazer com que os alunos possam ter acesso a financiamentos para compra dos equipamentos adequados, compensando o que chamamos de exclusão digital.

BBC News Brasil – A educação deve passar por mudanças permanentes como resultado da experiência da pandemia?

Noleto – Não temos dúvida que sim. A transformação dos sistemas educacionais foi estimulada e reforçada durante a pandemia. Vimos muitas soluções inovadoras na aprendizagem florescerem na crise, numa combinação do presencial com o digital. Por isso a importância de uma revisão dos sistemas, para que eles passem a ser mais flexíveis, equitativos e inclusivos.

Mas, para isso, nós precisamos olhar para o financiamento global da educação. E precisamos aumentar os investimentos, para que os sistemas educacionais possam ser revisados. A combinação do digital com o presencial demanda recursos.

BBC News Brasil – No Brasil, há todo um debate se a educação precisa de fato de mais recursos, ou se esses recursos só precisam ser melhor administrados. Como a senhora vê esse embate?

Noleto – O Brasil é um país que tem um bom investimento em educação, mas não resta dúvida que ainda precisamos investir mais. Precisamos investir na infraestrutura das escolas, na formação adequada dos professores, na capacitação. Diante da pandemia, isso se tornou ainda mais fundamental. Precisamos de escolas que sejam ventiladas, tenham saneamento básico, e condições adequadas de higiene.

Precisamos da capacitação e da formação adequada dos professores para combinar esse modo híbrido de uma educação digital com presencial. É hora de reinventar a educação e acelerar as mudanças positivas.

BBC News Brasil – Com o fim do auxílio emergencial previsto para dezembro, e sem perspectivas de uma ampliação do Bolsa Família no próximo ano, o aumento esperado do desemprego e da pobreza podem impor um desafio adicional à infância e à educação?

Noleto – Não vou comentar aqui as políticas brasileiras, mas faço uma avaliação global sobre os desafios trazidos pela pandemia. A crise do coronavírus aprofundou nossas desigualdades. Isso é uma realidade para o mundo todo e, no Brasil, não será diferente.

BBC News Brasil – Em artigo publicado nesta semana no jornal O Globo, a senhora destacou que a Unesco discute nesse momento as implicações éticas do uso da inteligência artificial. O que está sendo pensado pela organização nesse sentido?

Noleto – A Unesco tem também funções normativas. Tendo uma governança de países – são 193 países-membros – uma das demandas feitas à organização foi discutir as implicações éticas da inteligência artificial, porque sabemos que ela tem uso crescente no mundo e é preciso que se discuta de que maneira as questões éticas vão estar colocadas. Quem vai decidir, por exemplo, se uma pessoa terá ou não determinado atendimento, como os algoritmos influenciarão a vida e a saúde das pessoas, como eles impactarão os direitos humanos.

BBC News Brasil – A expectativa então é que dessa discussão saia alguma normativa?

Noleto – Uma declaração e uma recomendação, que os países possam adotar e ratificar. Temos a expectativa de que ela esteja pronta em 2021, para nossa conferência geral, que acontece no mês de novembro.

BBC News Brasil – A Unesco também tem entre seus mandatos a Cultura, uma das áreas mais afetadas pela pandemia, já que muitos dos eventos culturais dependem do encontro entre pessoas para acontecer. Como a organização vê o futuro do setor?

Noleto – Estamos confiantes e muito com o setor da cultura. Percebemos que a arte foi uma das formas mais importantes de manter a coesão social durante a pandemia. Vimos uma reinvenção do setor com lives, visitas virtuais a museus, espetáculos de danças, de orquestras, de filarmônicas, reinventando formas para que, durante a pandemia, o ser humano não ficasse privado do contato com a arte e com a acultura.

Não resta dúvida que a impossibilidade dos eventos presenciais impactou muito do ponto de vista econômico, mas acreditamos que as indústrias criativas estão se reorganizando para emergir muito mais fortes.

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