Reforma ortográfica sacode as editoras e gira milhões

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A reforma que unifica a ortografia portuguesa nos países lusófonos -Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste – ainda não tem uma data oficial de implantação no Brasil, mas já é responsável por uma corrida contra o tempo e investimentos da ordem de milhões de reais pelas editoras, principalmente as que trabalham com livros didáticos e têm até o próximo dia 2 para apresentar as provas para seleção das obras que serão adquiridas pelo Ministério da Educação (MEC) para uso em sala de aula em 2010 e já devem estar adequados às novas normas.  
 
 
O diretor editorial do grupo Ibep e Companhia Editora Nacional, Antonio Nicolau Youssef, estima em R$ 3,5 milhões os gastos extras com a contratação de revisores e descarte do estoque antigo de livros didáticos. “Investimos R$ 850 mil exclusivamente na montagem de uma equipe extra com 16 revisores e um guia de reformulação para adequarmos as obras que serão inscritas no Programa Nacional de Desenvolvimento na Escola (PNDE)”, detalha. 
 
 
Segundo Nicolau, o volume de descarte de livros que se tornarão obsoletos dependerá da performance de venda dos títulos em 2009. “Nossa estimativa é ter de inutilizar entre 180 mil e 300 mil livros”, relata Nicolau, que garante que não haverá repasse do aumento de custos para os preços. “É um mercado muito competitivo. Acho que ninguém vai se arriscar a repassar, sob pena de ficar para trás. Temos de encontrar outros colchões de absorção, como publicidade, logística ou administração de estoques para compensar essas perdas”, aponta. 
 
 
Na Editora Melhoramentos, ainda não há um levantamento das perdas com estoques defasados, mas os investimentos para adequação das obras devem chegar a R$ 1,5 milhão. “Só na reforma do banco de dados do Michaelis, devemos gastar entre R$ 800 mil e R$ 1 milhão. Apesar de já termos uma equipe de 14 revisores, lexicógrafos e dicionaristas, tivemos de contratar outros 30 profissionais e oferecer treinamento a todos”, relata o superintendente da Editora Melhoramentos, Breno Lerner, que também garante que não haverá repasse para os preços. “Terei de baixar minha margem”, afirma. 
 
 
A gerente editorial da Editora FTD, Silmara Vespasiano, diz que ainda não colocou na ponta do lápis o desembolso extra exigido pela reforma ortográfica, mas os gastos já começaram. “Já estávamos trabalhando nas obras para o Mec quando nos foi exigida a adequação à reforma. Tivemos de voltar algumas etapas e, de início, contratar 18 profissionais free lancer”, relata Silmara, que ainda não tem uma estimativa das perdas com descartes de exemplares obsoletos.  
 
 
Na Editora Lê, alguns títulos também já começaram a ser adaptados para inscrição nos programas de compra Ministério da Educação. “A gente ainda está meio perdido. Que (a reforma) vai trazer um custo adicional, não há dúvidas, mas ainda não temos como mensurar”, afirma o diretor da Editora Lê, José de Alencar Mayrink. Para minimizar possíveis prejuízos com estoques obsoletos, a editora está reduzindo as tiragens das novas impressões. “Estamos trabalhando com tiragens mais diminutas, em torno de mil exemplares, quando o normal é 5 mil. Nosso receio é que se crie uma ânsia pelo livro novo”, aponta Mayrink, que também não acredita em alta de preços e é pessoalmente contra a reforma. “Acho despropositado. Não muda positivamente a vida de ninguém. Ao contrário, as pessoas terão mais dificuldades para escrever corretamente ”, opina. 
 
Segundo a editora executiva da Associação Brasileira de Livros Didáticos (Abrelivros), Beatriz Grellet, ainda não há uma estimativa dos impactos financeiros da reforma para o setor. “O que a gente já sabe é que é um processo que vai dar muito trabalho porque é quase que manual, feito página por página”, aponta. 
 
 
O presidente da Comissão de Língua Portuguesa do Ministério da Educação, Godofredo de Oliveira Neto, explica que a implantação da reforma no país depende da assinatura de um decreto presidencial pelo presidente Lula. “A proposta da comissão é que se comece em janeiro de 2009. Na área didática, já está definido que os livros adquiridos para utilização em 2010 devem estar adequados às novas normas”, adianta Neto. Segundo o presidente da comissão, os livros didáticos com a ortografia atual e a nova conviverão até dezembro de 2011. “Temos livros do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação (FNDE) comprados no ano passado que têm três anos de validade e que estarão em uso até o final de 2011”, explica. 
 
Para editoras, novo mercado é falsa promessa 
 
Entre as principais polêmicas que envolvem a reforma ortográfica está a possível abertura de um potencial mercado consumidor de sete países para o livro brasileiro -Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste -que juntos somam 56 milhões de habitantes. De um lado, os defensores da reforma e do argumento de que a unificação põe fim às barreiras ortográficas. Do outro, os críticos lembram que as questões semânticas permanecem e trazem na ponta língua frases de efeito que ressaltam as diferenças: “As pessoas vão continuar indo ao açougue para comprar alcatra no Brasil e indo ao talho comprar lomo em Portugal”, brinca o superintendente da Editora Melhoramentos, Breno Lerner, um crítico ferrenho da teoria de novos mercados.  
 
“Poucas vezes ouvi uma besteira tão grande. Só o fato de lá não se usar gerúndio já impossibilita qualquer coisa. Além disso, os países africanos em questão são de língua oficial portuguesa, mas ninguém está falando que proporção da população fala efetivamente o português”, pondera Lerner.  
 
Para o diretor editorial do grupo Ibep e Companhia Editora Nacional, Antonio Nicolau Youssef, no entanto, é possível falar em abertura a médio e longo prazos. “Não é um movimento imediato, mas algo para começar em uns dez anos. É o tempo do mercado acomodar a reforma e construir novas regras. Isso (o intercâmbio de obras) já acontece entre o Reino Unido e os Estados Unidos. A partir do momento em que há uma unificação da ortografia, quebra-se uma barreira que existia para a comercialização. Por outro lado, fica sobrando a barreira semântica. A reforma não mexe nas palavras que são grafadas da mesma maneira, mas têm significados diferentes”, pondera Nicolau. 
 
Na avaliação da gerente editorial da FTD, Silmara Vespasiano, é prematuro falar em novos mercados. “É preciso lembrar que o acordo unifica exclusivamente a escrita. Não dá para dizer que só a reforma vai abrir mercados. A formação das frases, por exemplo, acontece de forma diferente. Acho que seriam necessárias adaptações”, opina Silmara.  
 
A presidente da Câmara Brasileira do Livro, Rosely Boschini, vê oportunidades, principalmente, para as publicações técnicas. “Acho que os livros técnicos, principalmente os de medicina e engenharia, vão ganhar muito”, opina, destacando que a reforma traz outros ganhos, além dos de mercado. “Conquistamos a permanência do português como um idioma forte”, aponta. 
 
Já a diretora executiva da Associação Brasileira de Livros Didáticos (Abrelivros), Beatriz Grellet, pondera que no caso dos escolares, há, ainda, as barreiras curriculares. “O acordo é meramente ortográfico. O restante não muda nada”, destaca.  
 
As oportunidades concretas, até agora, têm surgido para os revisores. O diretor do Armazém de Idéias, André Carvalho, lembra que todas as reedições terão de passar por revisores para adequação às normas da reforma. “Hoje, um revisor cobra cerca de R$ 3 por página”, aponta Carvalho, que também reclama do aumento das despesas com fotolitos. ½Perderei todos os anteriores à reforma. Para quem trabalha com livro infantil é um desastre”, lamenta. 
 
O autor e revisor Antonio Libério Neves, 74 anos, já está com trabalho extra por causa da reforma. ½Estou fazendo a revisão de dez livros para a Editora Lê. Como eles vão entrar na seleção do Governo, já têm de estar adequados”, relata Libério, que de manhã trabalha nos livros da Lê já de acordo com a nova ortografia e à tarde atua como revisor na PUC-Minas, seguindo as regras atuais para a revisão de monografias, dissertações e artigos científicos.  
 
“De manhã, trabalho com as cópias das alterações do meu lado para consulta. Mas as modificações são de pouco volume e não alteraram a estrutura da língua”, relata o revisor, que é autor de 26 livros e prevê mais trabalho extra daqui para frente. “Acho que muitas pessoas que antes não encaminhavam seus textos para revisão vão começar a nos contratar por se sentirem inseguras”, avalia.  
 
Em 1971, ano da última reforma ortográfica, Libério já trabalhava como revisor. “Para a gente é tranqüilo. A adaptação acaba sendo lenta e pacífica. A revolta maior é dos editores que, de um modo ou de outro, vão ter prejuízo”, aponta. Apesar do aumento da oferta de trabalho, o revisor se diz contra a reforma. ½Acho que não apresenta nenhum benefício para a língua. Não é por causa dessa unificação que passaremos a ter afinidade com a literatura de Cabo verde, por exemplo”, opina. 
 
Para Bechara, unificação preserva língua 
 
Sem uma data oficial de implantação no Brasil, a reforma ortográfica já é alvo de incertezas e polêmicas. Na mira dos críticos, o argumento de que a unificação abriria mercados para as publicações brasileiras vem sendo contraposto por meio de frases de efeito, como a de que «os putos vão continuar fazendo a bicha em Portugal, enquanto no Brasil os meninos permanecerão entrando na fila». Nesta entrevista ao HOJE EM DIA, o gramático e imortal da Academia Brasileira de Letras Evanildo Bechara, um dos principais articuladores brasileiros do acordo ortográfico, fala sobre os benefícios da reforma, defende a tese da abertura de novos mercados e esclarece as principais dúvidas que ainda cercam o tema. 
 
As editoras têm se queixado da falta de um novo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp) para que possam fazer as adequações necessárias nos livros didáticos com mais segurança. Há uma previsão de quando o Volp será lançado pela Academia? 
 
O problema é que a reforma ainda não é oficial. Por enquanto, trata-se de uma proposta. Estamos esperando por um decreto presidencial que a oficialize para publicar o Volp, já de acordo com as novas regras. Se o decreto for assinado o mais cedo possível, como esperamos, estaremos com o vocabulário pronto em novembro. A expectativa é que a reforma entre oficialmente em vigor em janeiro de 2009. 
 
Fala-se da abertura de novos mercados para as editoras brasileiras. Mas, e as questões semânticas? Os críticos brincam que «os putos vão continuar a fazer a bicha em Lisboa, com ou sem acordo ortográfico». 
 
Com uma ortografia unificada, desaparecem as barreiras ortográficas e de mercado. A língua é a mesma, o que temos são variedades de uso que acontecem até no próprio Brasil. Se você for a Recife, minha terra, e perguntar na quitanda se tem tangerina, o quitandeiro vai dizer que não, porque lá se usa laranja-cravo. Temos essas frases construídas para mostrar a diferença, mas se você ligar a tevê na RTP (emissora portuguesa) vai entender tudo o que eles estão dizendo. Lá, os portugueses também entendem a novela brasileira. Essas poucas palavras no universo do léxico da língua portuguesa não constituem problema. 
 
Que proporção das palavras brasileiras sofrerá alterações? Fala-se em 0,4% do vocabulário. É isso mesmo? 
 
Essa informação é tirada de um levantamento a partir de 80 mil ou 90 mil palavras que fazem parte do Português Fundamental, mas o nosso vocabulário tem 360 mil palavras. Ainda não temos um levantamento de quantas serão alteradas. 
 
O senhor tem acompanhado o cronograma de implantação da reforma nos demais países que aderiram ao acordo? Parece-me que, em Portugal, o processo de implantação começa em seis anos. 
 
Em Portugal, falta a assinatura do presidente, assim como aqui. Acreditamos que, a partir do momento em que Brasil e Portugal implantarem a reforma, os demais devam seguir o mesmo caminho. Na época em que foi assinado o acordo inicial entre os sete países – ainda não havia o Timor Leste -, todos estavam de acordo com o texto. Em Portugal, serão seis anos para o início da obrigatoriedade. 
 
Quanto do vocabulário da língua será unificado? Por que não é 100%? 
 
Haverá unificação de 98% da ortografia do vocabulário. Hoje temos duas ortografias. A usada em Portugal, repetida pelos países africanos, e a ortografia brasileira. Esse acordo veio para diminuir as diferenças, de modo que pudéssemos ter um sistema unificado, o que não significa o fim da duplicidade de formas, quando existentes. Acessível e accessível, por exemplo, têm duas pronúncias, e as duas têm que estar registradas. 
 
Quais os principais ganhos com a reforma? 
 
É como diz a sabedoria popular: a união faz a força. A unificação em todo o território da lusofonia é, sem dúvida, uma defesa da língua contra o movimento natural de globalização, onde várias línguas desaparecem semestralmente 

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