Por que o novo ensino médio é alvo de protestos?

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Reforma chega ao segundo ano de implantação em meio a críticas sobre aumento de desigualdades e precarização do ensino em escolas públicas, que abrigam a grande maioria dos estudantes desta etapa. Mais tempo na escola e mais autonomia nos estudos, com conteúdos mais atraentes e próximos da realidade dos estudantes. Essa era a promessa do Novo Ensino Médio, que em 2023 chega ao seu segundo ano de implantação sob críticas de especialistas e protesto de estudantes e profissionais da rede pública de ensino.

Para os opositores da reforma, a promessa é vã. Eles demandam a revogação do modelo sob o argumento que ele precariza um já combalido ensino público, aprofunda desigualdades e deixa esses jovens em situação de desvantagem. A rede pública concentra a esmagadora maioria desses estudantes – são 87,7% dos 7,9 milhões de matriculados no ensino médio, segundo dados do Censo Escolar de 2022.

“Na prática, não estamos sendo preparados nem para o mercado de trabalho, nem para entrar na universidade”, afirma Jade Beatriz, que preside a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes). “É como se estivessem soltando a mão do estudante pobre.”

Aluna do curso técnico em edificações pelo Instituto Federal de São Paulo (IFSP), Jade critica o enxugamento de disciplinas antes obrigatórias e a introdução de conteúdos irrelevantes nos currículos da rede pública. “Os estudantes de escola particular estão tendo coisas tipo astrofísica, dentro de grandes laboratórios, enquanto nós temos aula de como fazer brigadeiro caseiro.”

O que mudou com o Novo Ensino Médio

Instituída por Medida Provisória durante o governo Michel Temer em 2016 e convertida em lei federal no ano seguinte com aval do Congresso, a reforma ampliou a carga horária total – de 2.400 para 3.000 horas – e introduziu conteúdos optativos, que agora perfazem 40% do ensino médio.

Os demais 60% seguem a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), compulsória para todos os estudantes. Ela estabelece como obrigatórias apenas três disciplinas, sem fixar carga horária mínima: português, matemática e língua estrangeira. As demais matérias foram reagrupadas em quatro áreas do conhecimento: matemática, ciências da natureza, ciências humanas e sociais, e linguagens.

A ideia é que os alunos possam escolher em quais áreas irão se aprofundar, com a opção de seguir um ensino técnico profissionalizante para completar a nova carga horária.

A reforma também permite que conteúdos sejam ministrados em sala de aula ou em formato virtual por indivíduos e instituições privadas com “notório saber”, independente de formação pedagógica.

Pelo cronograma, até 2024 todas as três séries estarão sob o novo regime – em 2022, abrangeu apenas alunos do 1º ano do ensino médio; agora, segue nos 1º e 2º anos.

Defensores do novo modelo argumentam que ele é mais atraente e flexível para os estudantes, aproximando a teoria ensinada em sala de aula à prática do mercado de trabalho.

Educadores e ativistas do movimento estudantil chamam atenção, porém, para o fato de que a liberdade e a qualidade das escolhas dependem das condições reais das redes de ensino e das escolas. Na prática, afirmam, estudantes da rede pública tiveram o currículo desidratado e ou estão sem opções, ou não têm opções adequadas à disposição.

Para críticos, mudanças aprofundam desigualdades

Antes da reforma, os estudantes partilhavam a mesma base curricular de 2.400 horas, agora reduzida a 1.800 horas para dar lugar às optativas. Segundo a coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, não raro é o caso de “disciplinas sem sentido, que formam aprendizados rasos e nada críticos”, e ministradas de forma precária, na base do improviso.

Pellanda critica também a exclusão ou redução do tempo de disciplinas importantes para a formação cidadã e o acesso ao mercado de trabalho. Permitir aos jovens alguma flexibilidade e autonomia no ensino médio, “em condições ideais e com qualidade”, não é ruim, afirma. O problema, segundo ela, é que essas condições não estão dadas no momento.

Coordenadora do Observatório do Ensino Médio e professora da Universidade Federal do Paraná, Monica Ribeiro aponta ainda a falta de coordenação central e diálogo na implantação da reforma. “Isso fez piorar ainda mais o que já não era bom. Cada estado organizou de um jeito. Temos hoje 27 ‘ensinos médios’ pelo país”, observa.

A isso somam-se amarras orçamentárias que inviabilizam a oferta de escolhas reais e atraentes para os estudantes da rede pública. Sem dinheiro, cada escola se vira como pode.

Para Pellanda, a tendência é as desigualdades se agravarem: “Escolas privadas de elite não têm reduzido as disciplinas mais densas, e sim disponibilizado a integralidade dos caminhos formativos, inclusive algumas dando a opção de estudantes escolherem mais de um para cursar, construindo um modelo contextualizado e de qualidade.”

A diretora do Instituto Reúna e uma das envolvidas na reforma do ensino médio, Katia Smole, pontua, porém, que já havia uma grande desigualdade antes da reforma. Ela defende as linhas gerais do novo modelo, mas afirma que ajustes são necessários. “Não dá para achar que temos que acabar com tudo porque os jovens estão trazendo essas queixas. É preciso ouvir para melhorar.”

Dificuldades logísticas e financeiras

Embora estudantes possam frequentar outras instituições de ensino para complementar o currículo optativo, Jade, da Ubes, lembra que nem todos podem bancar essa logística. “Isso envolve dinheiro de passagem, alimentação. Quem é classe trabalhadora não tem recurso para isso.”

Além disso, uma parcela relevante dos municípios brasileiros tem apenas uma escola que oferece o ensino médio – eram 48% nesta situação, segundo dados de 2020.

E o ensino à distância, nesses casos, nem sempre é uma solução adequada. Além da qualidade, há ainda barreiras de ordem material, social e psíquica, já que a modalidade pressupõe infraestrutura e condições adequadas de aprendizagem, num contexto de pós-pandemia em que muitos estudantes se sentem exauridos.

Jornadas escolares mais longas, por outro lado, desencorajariam jovens que precisam conciliar os estudos com um trabalho.

Jade relata que a maior queixa dos secundaristas à Ubes é que as jornadas escolares se tornaram muito extensas e confusas, com uma série de conteúdos inseridos nos currículos apenas para cumprir tabela. “Fora o fato de que não estamos sendo preparados para o Enem, que vai cobrar todas as matérias que foram tiradas da grade obrigatória”, ressalta.

Investir em formação de professores e currículos críticos

Opositores da reforma se queixam ainda da ausência de um debate amplo com estudantes, profissionais da educação e pesquisadores. A discussão, argumentam, teria sido pautada principalmente por organizações ligadas ao empresariado, que veriam na reforma uma oportunidade para recrutar mão de obra barata e vender serviços à rede pública na forma de assessoria pedagógica.

“O problema não está na participação do empresariado, enquanto sociedade civil organizada, em opinar sobre os rumos da política pública educacional, mas na imposição de um projeto formativo e em lucrar com isso”, afirma Ribeiro, da UFPR.

Pellanda diz ser natural esperar que as escolas preparem os jovens para o mercado de trabalho, já que essa é uma das funções da educação definida pela Constituição. “O problema é o filho do pobre acessar uma educação precarizada que só vai preparar para um trabalho precarizado e o filho do rico receber uma educação para se manter no topo da pirâmide social. A educação pública deve ter qualidade e ser aliada a políticas afirmativas que permitam a mobilidade social. ”

Para a cientista política, o caminho para melhorar o ensino público passa por investir nos professores e em um currículo crítico, interdisciplinar e contextualizado, debatido democraticamente com os estudantes e pensado para o desenvolvimento pleno deles.

Publicado por Terra em 21/03/2023.

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