O fundamental deve vir antes

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O“Fantástico” (de 13 de junho) apresentou resultados de um teste de português e matemática aplicado a alunos de quarta série do ensino fundamental. O resultado mais importante é incontestável e confirma o que os testes do Ministério da Educação já vêm dizendo há muito tempo: entre 60% e 80% das crianças na quarta série não conseguem compreender o que lêem nem resolver problemas simples de matemática.  
 
O ministro da Educação não contesta os resultados. O estudo não permite conclusões específicas sobre diferentes municípios ou redes estaduais. Infelizmente nenhuma rede de ensino estadual ou municipal possui dados para provar que não está na vala comum. Onde está a novidade? Por onde avançar?  
 
Se há um consenso sobre o problema, ainda paira uma confusão sobre sua natureza: muita gente acha que o aluno consegue ler, mas não consegue entender. Ledo engano: o aluno brasileiro típico não compreende porque não sabe ler, porque não foi adequadamente alfabetizado.  
 
Três considerações merecem reflexão e debate, mesmo por parte do público não especializado.  
 
Primeiro: o conceito de alfabetização. Refere-se ao domínio do código alfabético, à capacidade de ler e escrever corretamente uma palavra ou uma frase. Esse processo de aprendizagem é e deve ser rápido. Dependendo da complexidade da língua escrita leva no máximo dois anos. É o que se chama de alfabetizar ou ensinar a ler e escrever. Divergindo do resto do mundo, a orientação oficial do MEC sobre alfabetização ignora e minimiza esse primeiro passo.  
 
Segundo: o conceito de analfabeto funcional. Na década de 50 bastava assinar o nome para casar e assinar o título — quem o fizesse era alfabetizado. Depois começamos a falar em saber fazer um requerimento ou coisas do gênero. Esse tipo de definição corre o risco de desviar a atenção para a especificidade da alfabetização e de confundi-la com outras coisas.  
 
A ciência cognitiva da leitura permite uma definição mais técnica: analfabeto funcional é o que não tem fluência de leitura adequada ao nível em que opera. Ou seja, o leitor cujo nível de fluência não é funcional para o contexto em que a leitura ou escrita é requerida. O mínimo de funcionalidade é ser capaz de ler 80 a 90 palavras por minuto — menos do que isso impossibilita a compreensão. Esse deve ser o conceito de alfabetizado ao final da primeira série. Na quarta série um aluno precisa ser capaz de ler e compreender um texto dessa série com um ritmo de pelo menos 150 palavras por minuto. No ensino médio essa exigência passa para 250 palavras.  
 
Terceiro: a natureza da compreensão. A compreensão depende de outros fatores — nível de inteligência, vocabulário e domínio de estratégias específicas para compreender diferentes tipos de texto. Mas a compreensão da leitura depende de saber ler. E são exatamente esses os fatores que vêm sendo negligenciados no ensino brasileiro — e não apenas no ensino público. Em síntese: é incorreta, na maioria dos casos, a interpretação de que o aluno lê mas não compreende. Na maioria dos casos, o aluno não compreende porque não aprendeu a ler.  
 
Sabemos o que é preciso fazer. É forçoso reconhecer que o Brasil já fez seis rodadas de avaliação e não sai do lugar — ao contrário, anda para trás. As autoridades educacionais usam a mesma estratégia ineficaz: capacitar professores. No “Fantástico” o secretário de Ensino Fundamental do MEC veio com essa solução de sempre. Por aí já sabemos que não dá.  
 
Relatório apresentado à Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, em 15 de setembro de 2004, contém a agenda do que precisa ser feito. Se o peixe apodrece pela cabeça, é pela cabeça que temos que regenerá-lo. No centralismo brasileiro, a cabeça está no MEC, e cabe ao MEC tomar a liderança. O ministro da Educação terá de optar entre ser mais um a tentar mexer no vespeiro do ensino superior, com pouca chance de êxito, ou ser o primeiro a envolver-se de corpo e alma numa questão que dá para ser resolvida. E, dessa forma, tornar prioritário o que deve vir antes: o ensino fundamental de qualidade para todos.  
 
 
JOÃO BATISTA ARAUJO E OLIVEIRA é especialista em educação. 
 

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