Professores de escolas ditas de elite têm enfrentado um dilema exemplar da situação brasileira. São eles que, diante da tarefa hercúlea de ensinar, recebem uma molecada cujos pais não os deixam esquecer que estão pagando pelo serviço e querem ver resultados. Na escola tida como empresa, é o produto final que está em disputa.
Não que nas demais escolas corpo docente e pais não enfrentem desencontros, longe disso. Temos o belíssimo trabalho do psicanalista Rinaldo Voltolini para nos mostrar o que o autor chama de “divórcio entre a família e a escola” (em “Laço”, Autêntica, 2020).
Mas na escola dita de elite, para muitas famílias a questão central é colocar a criança para fazer networking, introduzindo-a no mundo dos bem-nascidos.
Nesses casos, é mais importante que a instituição funcione como passaporte para o contato com outros integrantes da elite do que como educação propriamente dita. Para essa última, resta a expectativa de que a criança fale outras línguas como se fosse nativo e conheça os macetes para se dar bem no vestibular —ou o que for preciso para ser aceito em universidades estrangeiras. O ensino mesmo, aquele que se pauta no exercício da reflexão e da crítica, pode se tornar um estorvo diante desse projeto.
Num mundo no qual a ingerência dos pais no espaço escolar se torna uma constante e no qual o cliente tem sempre razão, a criança acaba servindo de cabo de guerra entre aquilo que merece ser chamado de educação e aspirações cínicas que veem nela um mero trampolim social.
O professor, por sua vez, longe de sofrer as agruras do docente de escola pública, como salários irrisórios, carga horária insana, condições insalubres e descredibilidade social, tem que se haver com a paixão pela ignorância, como dizia Lacan. Quanto mais ele se qualifica para preparar a criança para um mundo que perde sua capacidade reflexiva e crítica, mais ele se vê boicotado pela família dessa mesma criança. Como trazer o mundo para o aluno, sua realidade e contradições quando os pais que sustentam a escola exigem que não se saiba nada sobre isso?
Sexualidade, política, racismo, misoginia, pobreza têm sido temas tabu em todas as escolas de todas as classes sociais, que pais supostamente zelosos juram que pretendem discutir em casa, dispensando a opinião dos de fora.
Dessa forma, solapam o caráter público da escola, que é sua razão de existir. É porque os diferentes se encontram para assimilar os conteúdos no mesmo espaço, de forma democrática, reflexiva e respeitosa que a escola sempre será pública por excelência, seja paga ou não.
Mas o pavor dos pais de escolas daqueles que têm acesso a tudo é que as crianças tenham contato com aqueles que nada têm. São pais que aspiram a que a escola funcione como o carro que circula pela cidade e só vê a pobreza e a injustiça social pelo vidro blindado. Para que diante da pergunta sobre o porquê de uma criança estar no farol pedindo eles possam vomitar seus delírios meritocráticos, sem que o filho tenha acesso ao contraditório. Alguns chegam a fazer motins via grupo de WhatsApp fingindo ignorar que se comprometeram com o conteúdo programático no ato da matrícula.
Exigir que o professor seja calado diante do debate das questões que nos humanizam é fazer da escola esse mesmo carro blindado dirigido pela paranoia. Mas é no lugar de onde saem “os donos do mundo” que essas questões precisam ser incessantemente recolocadas. Os professores mais atualizados, qualificados e ciosos de seu trabalho são um inferno na vida das famílias que só querem que a próxima geração reproduza o pior. Eles são também nossa esperança e consolo.
Publicado por Folha de S. Paulo em 27/11/2023.