Livros, tributos e desenvolvimento socioeconômico

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2020 foi um ano bastante intenso para a cadeia do livro. Além dos inúmeros desafios e restrições impostos pela Covid–19, foi também o ano em que o livro se tornou o centro do debate público em decorrência da proposta de reforma tributária enviada ao congresso pelo Governo Federal e representada na figura do ministro da economia, Paulo Guedes. A primeira parte, apresentada em julho, tem como foco principal a criação da Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS) em substituição ao regime vigente do PIS/Pasep e Cofins. A indústria do livro, que até então estava isenta de tais tributos¹, passaria arcar com uma alíquota adicional de 12%.

O economista Bernard Appy, mentor da proposta de reforma tributária (PEC 45/2019) em tramitação no Congresso, afirmou em evento promovido pela PUC-SP (Perspectivas da Economia Brasileira e a Reforma Tributária)², que a reforma deve acarretar no desaparecimento ou no encolhimento drástico de alguns setores, mas que a isonomia entre as indústrias é necessária para garantir a eficiência do regime tributário. Não há dúvidas que o país precisa de uma reforma tributária, o fato é consenso até entre os economistas ortodoxos e heterodoxos. É preciso corrigir as distorções econômicas e sociais impostas pelo modelo atual de tributação e simplificar todo o sistema que, notoriamente, é um dos mais complexos do mundo. Contudo, como naturalizar o desaparecimento ou encolhimento drástico de algumas indústrias sem levar em consideração sua função social e determinar se esta indústria cumpre ou não um papel estratégico? Como definir eficiência quando o que está em jogo é cultura e produção de conhecimento?

Uma alíquota adicional de 12% acarretará no aumento de custo, que indubitavelmente será repassado para o preço do livro³. A indústria, que nos últimos 14 anos sofreu queda de 29% em termos reais⁴, encolherá ainda mais. A bibliodiversidade já afetada com a crise econômica e com a crise das grandes redes de livrarias sofrerá outro baque. Em outras palavras, para garantir sua permanência no mercado, as editoras irão restringir sua produção, apostando apenas em autores já conhecidos e de retorno garantido, o que resultará no impacto negativo imediato na produção de cultura e conhecimento.

Além disso, o aumento no preço do livro irá reduzir ainda mais uma demanda que já é restrita. De acordo com a última edição da pesquisa Retratos da Leitura⁵, não houve alteração substancial na realidade leitora do país. O percentual de indivíduos que leu um livro (inteiro ou em partes) nos últimos 3 meses permanece na casa dos 50%.

A Retratos também aponta que a principal forma de acesso ao livro é a compra realizada em lojas físicas ou virtuais (representando 41% do total) e que apenas 23% dentre aqueles considerados indivíduos leitores compraram ao menos 1 livro nos últimos 3 meses. E ao contrário do que muitos acreditam e do que foi falsamente propagado, a pesquisa indica que cerca de 27 milhões de brasileiros nas classes C, D e E são consumidores de livros, ou seja, cerca de 39% dessa população e para essas pessoas o preço tem maior influência na escolha de um livro.

Fica evidente, portanto, que restringir o acesso ao livro e reduzir a bibliodiversidade não trará impactos negativos apenas para a cadeia do livro, mas também e fundamentalmente para uma sociedade que já não cultiva o hábito de leitura.

Neste sentido, se a taxação do livro resulta em impactos expressivamente negativos quando observado o lado cheio do copo, quando analisado o universo de sujeitos não leitores as consequências são ainda mais graves. A Retratos da Leitura apontou que 45%⁶ das dificuldades apontadas para ler um livro e declaradas pelos indivíduos não leitores estão fortemente relacionadas com o conceito de analfabetismo funcional e com a ideia de letramento.

O Brasil ocupa a 57º posição na categoria proficiência em leitura, de acordo com a última edição do Pisa⁷, lançada em 2018. O ranking é composto por 77 países. Nesta mesma avaliação e para esta mesma categoria, 50% dos estudantes brasileiros com 15 anos de idade não conseguiram alcançar aquele que é considerado o nível básico pela OCDE. A educação e a crise global de aprendizagem foram o foco do World Development Report⁸ de 2018 e, segundo documento produzido pelo Banco Mundial cujo objetivo é verificar o grau de desenvolvimento social e econômico dos países, os estudantes brasileiros levarão 260 anos para atingir o mesmo nível de proficiência em leitura que a média detectada pela OCDE. Também em 2018, o INAF⁹, índice de analfabetismo funcional produzido pelo Instituto Paulo Montenegro, mostrou que houve uma redução no número de analfabetos dos pais. Porém, a mobilidade se deu da base para o meio da pirâmide, o topo da pirâmide, composto pelos indivíduos com total capacidade leitora, permaneceu inalterado.

O cenário que é inegavelmente muito ruim, ficará ainda pior, na medida que o livro cumpre papel central na aquisição da capacidade leitora, na alfabetização e letramento, na formação da população de um país. Não à toa os países considerados desenvolvidos e/ou centrais estão melhores ranqueados nos índices educacionais e de leitura e também concedem ao mercado livreiro algum tipo de isenção de taxa ou tributo.

Estes índices refletem não apenas restrição de acesso ao conhecimento e consequentemente a negação do direito à cidadania. Estes índices retratam o grau de desenvolvimento e da capacitação da mão de obra do país, a qualidade do capital humano aqui existente o que consequentemente tem implicações macroeconômicas.

Países como a China e a Coréia, por exemplo, conseguiram alcançar alto grau de desenvolvimento de suas indústrias e atrair capital externo na medida em que ganhavam posições nos rankings educacionais. Nos últimos anos, o PISA apontou melhora significativa nos resultados da educação e do sistema educacional português, que passou a exportar mão de obra qualificada para o restante da Europa em função dos baixos salários pagos no país quando comparados com salários alemães, franceses, ingleses etc.

Não existe economia no mundo que trate com isonomia todas as suas indústrias, todo país elege setores estratégicos. Dificilmente a indústria brasileira do livro irá desaparecer, contudo a realidade brasileira impõe a necessidade de considerá-la estratégica para o desenvolvimento socioeconômico do país e naturalizar seu encolhimento é aceitar a irreversibilidade dos nossos níveis de leitura e educacionais e que este é o papel que nos cabe no tecido socioeconômico global.

[1] O mercado de livros é protegido pela Constituição de pagar impostos (art. 150) e a Lei 10.865, de 2004, garante aos livros a isenção da Cofins e do PIS/Pasep.

[2] Semana da Economia da PUC- SP: Perspectivas da Economia Brasileira e a Reforma Tributária.

[3] O mercado estima que a incidência da CBS acarretará num aumento de 20% do preço do livro.

[4] De acordo com Série Histórica da pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, realizada pela Nielsen Book e coordenada pelo SNEL e pela CBL. Os dados em termos reais são deflacionados por meio da variação acumulada do IPCA.

[5] A Pesquisa Retratos da Leitura é realizada pelo Instituto Pró-Livro.

[6] 19% disseram que leem devagar, 13% declararam não ter concentração suficiente para ler, 9% afirmaram não compreender o que leem e 4% não sabem ler.

[7] Resultados do PISA 2018 https://www.oecd.org/pisa/publications/pisa-2018-results.htm

[8] O World Development Report é publicado anualmente pelo Banco Mundial https://www.worldbank.org/en/publication/wdr2018

[9] Relatório do Instituto Paulo Montenegro sobre analfabetismo funcional: https://ipm.org.br/relatorios

 

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