Livro brasileiro, uma história de 200 anos

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O ano de 1808 é considerado fundamental para a história do Brasil. A chegada da família real portuguesa foi decisiva para que a colônia deixasse de ser submetida a amarras mercantilistas e começasse a conquistar a autonomia que lhe daria condições de seguir vida independente. Para o que viria a ser a indústria editorial brasileira, não foi diferente. Menos de dois meses após o desembarque da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, o príncipe regente, dom João VI, emitiu uma carta régia autorizando a impressão no Brasil. Antes, qualquer escrito que surgisse na colônia deveria ser publicado na Europa ou permanecer na forma de manuscrito – restrição que pode em parte ser atribuída ao conservadorismo da administração do marquês de Pombal (1750-1777), para quem a impressão na colônia significava fonte de poder e infl uência dos jesuítas.  
 
A carta régia de dom João VI foi impressa em um dos dois prelos (ou prensas) que Portugal importou da Inglaterra para uso na metrópole e que, ironicamente, devido às turbulências políticas de 1807, nunca chegaram a ser usados lá: ficaram encaixotados no cais de Lisboa com 28 fontes de tipos para impressão. “A arte de imprimir com tipos móveis, que os governantes portugueses tanto se empenharam para não deixar chegar ao Brasil, acabou sendo trazida ao país pelo próprio governo“, resume o inglês Laurence Hallewell em O livro no Brasil, possivelmente a mais completa história das editoras comerciais no Brasil.  
 
Resultante de tese de doutorado defendida na Universidade de Essex (Inglaterra) em 1975, o livro chega neste mês à segunda edição brasileira – 20 anos após a primeira, publicada somente depois de Hallewell ter sido convidado para dar aulas de biblioteconomia na Universidade Federal da Paraíba. São 816 páginas de histórias detalhadas de editores e publicações, além de estatísticas que ajudam a compreender a formação e o desenvolvimento da cultura do livro no país.  
 
O livro no Brasil começa sua narrativa mesmo antes da descoberta da América, passa pelo primeiro século e meio de colônia, época em que “a indústria da impressão não era administrativamente necessária nem economicamente possível“, registra a tentativa frustrada dos holandeses de introduzir a impressão em Recife, na década de 1640, e chega ao século XVIII, quando se tem prova definitiva da existência de uma prensa em território brasileiro. Isidoro da Fonseca, um dos principais tipógrafos de Lisboa, foi responsável por um prelo no Rio em 1747. Ele teria vindo de Portugal, contra a vontade das autoridades da metrópole, a convite do governador do Rio e de Minas, Gomes Freire de Andrade. Logo que se soube em Lisboa de sua oficina de impressão, no mesmo ano, foi emitida uma ordem para fechá-la.  
 
Mas é realmente no século XIX que, como conta Hallewell, essa história começa para valer. No início, ainda sob forte controle ideológico e, na capital, sob monopólio do governo: da instituição da Imprensa Régia, em maio de 1808, até 1821, o órgão real deteve a exclusividade da impressão na Corte, como era conhecido o Rio. Por isso, não é de espantar que o primeiro concorrente do órgão oficial não tenha sido da cidade: Manuel Antônio da Silva Serva, antigo comerciante de Lisboa, que instalou em 1811 sua tipografia em Salvador, “maior do que um mercado de tamanho limitado poderia justificar“. Como os preços cobrados pela Imprensa Régia eram demasiadamente altos, era fácil para ele conseguir encomendas na capital. Após o fim do monopólio, decretado em 2 de março de 1821, instalaram-se no Rio as primeiras oficinas tipográficas particulares. Às vésperas da independência, eram “cerca de sete“. Na metade dessa mesma década Paris tinha 480 livrarias e 850 tipografias. 
 
Os principais tipógrafos dos anos que se seguiram foram Pierre René François Plancher de la Noé, que imprimiu a Constituição do Império do Brasil, e Francisco de Paula Brito, sucessor de Plancher e “o primeiro editor digno deste nome que houve entre nós“, em citação de Machado de Assis. Além do elogio de Machado, Paula Brito pode ser lembrado também pelo fato de sua loja ter abrigado a “Sociedade Petalógica“, grupo de poetas, compositores, atores, líderes da sociedade, ministros de governo, senadores, jornalistas e médicos que “constituíam movimento romântico de 1840-60“. 
 
Não é fato isolado no caso de Paula Brito que uma loja ou casa editorial tenha sido ponto de encontro da elite cultural. Como se descobre mais adiante na leitura, a paulistana Casa Garraux, de Anatole Louis Garraux, foi na década de 1870 local de encontro de estudantes da Faculdade de Direito, fundada em 1827, e de fazendeiros de café que eram educados, em número cada vez maior, na França ou na Alemanha. Outro exemplo é a livraria de José Olympio, no Rio de Janeiro, onde se encontravam escritores e artistas de opinião progressista. Carlos Drummond de Andrade chega a sugerir que a orientação socialista da literatura brasileira entre 1935 e 1937 deve ser compreendida como resultado dos bate-papos da rua do Ouvidor nº 110.  
 
O desenvolvimento de uma indústria editorial paulista viria na geração seguinte, com Monteiro Lobato. Segundo Hallewell, o escritor e editor deu passos que iriam revolucionar as perspectivas do autor brasileiro. Lobato se deu conta de que o mais sério problema que o livro enfrentava no Brasil era a falta de pontos de venda – havia pouco mais de 30 livrarias em todo o país dispostas a aceitar livros em consignação. Então, em 1918, ele começou a oferecer livros para lojas de varejo, farmácias e padarias, mas não açougues, “por temor de que os livros ficassem sujos de sangue“. Isso lhe proporcionou uma rede de quase 2.000 distribuidores espalhados pelo Brasil. 
 
O criador de Emília e companhia não parou por aí. Para cultivar um público leitor em âmbito nacional, implementou, além da distribuição, uma série de inovações: o lançamento de novos autores, o pagamento de direitos autorais compensadores, a publicidade em jornais, capas ilustradas e a melhoria na aparência interna dos livros.  
 
No início dos anos 1930, aparece no Brasil um novo centro editorial, Porto Alegre. Lá era sediada a livraria Globo, reconhecida no mercado livreiro brasileiro tanto pelos autores que passou a publicar como pela qualidade, personificada na figura de Erico Verissimo. Foi ele quem inaugurou na indústria do livro no Brasil a figura do editor profissional, que não era dono da editora.  
 
Na década seguinte, a editora José Olympio contribuiu para que os anos 1940 fossem denominados “a idade de ouro da tradução no Brasil“. O editor contratou escritores profissionais para traduzir, o que assegurava que todos os textos estariam bem escritos e que os trabalhos seriam feitos com cuidado e com preocupação, uma vez que tradutor devia pensar na própria reputação como escritor. José Olympio é tido por Hallewell como o principal editor brasileiro na década de 1930 e no início dos anos 1940.  
 
Hallewell descreve o crescimento da indústria editorial nos anos 1950 e a crise de duas décadas mais tarde. Seu trabalho, embora muito descritivo, não se resume a uma mera cronologia, e no final, ao desembocar na atualidade, adquire um tom mais analítico. Preocupado com o analfabetismo e com a baixa difusão do livro no país, o historiador constata que “há indícios de que a cultura brasileira não estimula o hábito da leitura“. Num oceano de fatores supostamente inibidores do desenvolvimento da leitura, o historiador afirma que, em sua opinião, o bloqueio mais forte é o fato de o Brasil continuar a ser, “uma sociedade essencialmente oral“. Como elemento favorável à mudança de atitude, ele confia na “fermentação intelectual“ produzida pelas inter-relações de grandes massas de seres humanos. Mas essa já é uma outra história. 

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