Libertem a língua

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SENDO A ortografia uma pequena dimensão da vida da língua, seria legítimo esperar que não fosse necessário o acordo ortográfico ou que, sendo-o, pudesse ser celebrado sem dificuldade nem drama. No caso da língua portuguesa, assim não é, e há que refletir por quê.  
 
A razão fundamental reside no fantasma do colonialismo inverso que desde há séculos assombra as relações entre Portugal e Brasil. Por séculos, a única colônia com propósitos de ocupação efetiva no império português, o Brasil, foi sempre e simultaneamente um tesouro e uma ameaça grandes demais para Portugal.  
 
Após um curto apogeu no século 16, Portugal foi durante toda a modernidade ocidental capitalista um país semiperiférico, isto é, um país de desenvolvimento intermédio, desprovido dos recursos políticos, financeiros e militares que lhe permitissem controlar eficazmente o seu império e usá-lo para seu exclusivo benefício. Teve, pois, de o partilhar desde cedo com as outras potências imperiais européias, e foi por conveniência destas que ele se manteve até tão tarde.  
 
A partir do século 18, Portugal foi simultaneamente o centro de um império e uma colônia informal da Inglaterra. À semiperifericidade de Portugal correspondeu a semicolonialidade do Brasil, tão bem analisada por Antonio Candido, a idéia contraditória de um país mal colonizado e superior ao colonizador, um país que resgatou a independência de Portugal e que, logo após sua própria independência, foi visto como uma ameaça aos interesses de Portugal na África.  
 
A relação colonizador-colonizado entre Brasil e Portugal foi sempre uma relação à beira do colapso ou à beira da inversão. Até hoje. É essa indefinição que torna tão necessário quanto difícil o acordo ortográfico.  
 
Do lado português, a posição ante o acordo assenta sempre na idéia de “rendição ao Brasil“, tanto para o aceitar como para o recusar. Em ambos os casos, o fantasma do colonialismo do inverso, em vez da idéia libertadora do inverso do colonialismo. Acontece que hoje a inconseqüência do acordo tem conseqüências que não tinha, por exemplo, em 1911.  
 
Em 1911, o acordo teve lugar entre dois países em que a língua portuguesa era a língua natural. No caso português, o colonialismo proibia que as línguas nacionais faladas nas colônias fossem um problema lingüístico. No brasileiro, o colonialismo interno impedia que as línguas indígenas existissem. Portugal considerava-se o dono da língua portuguesa, mas, porque não o era de fato, o acordo só começou a ser implementado em 1931.  
 
Hoje são oito os países de língua oficial portuguesa, e em seis deles a língua portuguesa coexiste com outras línguas nacionais, algumas delas mais faladas que o português. Nesses países, o contexto da política da língua é muito mais complexo.  
 
Mexer no português só faz sentido se se mexer nas línguas nacionais, e mexer nestas, em países que há pouco saíram de uma guerra civil, pode ter conseqüências bem mais graves que as do drama bufo luso-brasileiro.  
 
Por essas razões, deviam ser esses países a decidir o desacordo, mas pelas mesmas razões é pouco provável que aceitassem tal magnanimidade.  
 
Nesse contexto, a língua portuguesa deve ser deixada em paz, entregue à turbulência da diversidade que torna possível que nos entendamos todos em português. Revejo-me, pois, no comentário irônico e contraditório de Fernando Pessoa aos acordos ortográficos, escrito em 1931, ano em que se implementava o acordo de 1911: “Odeio… não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escrita, como pessoa propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ipsilon, como o escarro directo que me eno- ja independentemente de quem o cuspisse.  
Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da translitteração greco-romana veste-m’a do seu vero manto regio, pelo qual é senhora e rainha“.  
 
Apesar de transcrito na ortografia de Pessoa, foi difícil entender esse passo?  
 
 
 
 
 
 
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS , 67, sociólogo português, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal). É autor, entre outros livros, de “Para uma Revolução Democrática da Justiça“ (Cortez, 2007). 

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