Fundeb: solução ou remendo para o financiamento da educação básica?

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Fundeb, solução para os males do Fundef ou apenas mais um remendo para os problemas do financiamento da educação? É o que procuramos responder nas linhas seguintes, com uma breve descrição e análise do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais do Magistério), encaminhada como proposta de emenda constitucional (PEC) pelo governo federal ao Congresso Nacional em meados de junho de 2005, para substituir o Fundef (Fundo do Ensino Fundamental), que expira no final de 2006. Antes de mais nada, cabe lembrar que a PEC atual difere bastante de PECs anteriores relacionadas ao Fundeb, sendo que algumas delas podem ser visualizadas na página eletrônica do MEC (www.mec.gov.br).  
 
Previsto para durar até 2019, o Fundeb não é muito original na comparação com o Fundef, cujas falhas pretende corrigir. A diferença básica está na sua composição de impostos e matrículas a serem atendidas. O restante é bastante parecido com o Fundef, inclusive os seus limites. A sua composição, a partir do 4º ano de implantação (que seria em 2009, no caso de a PEC ser aprovada em 2005), é de 20% dos impostos estaduais (ICMS, IPVA, ITCM e dívida ativa e juros e multas dos impostos) e dos federais (FPE, FPM, LC 87/96, IR dos servidores estaduais e municipais, ITR) transferidos ao governo estadual e aos municipais de cada Estado. Antes da implantação definitiva, no quarto ano, a sua composição de impostos será variável. A proporção dos impostos hoje vinculados ao Fundef (ICMS, FPM, FPE, IPI-exp. e LC 87/96) será de 16,25%, no primeiro ano, 17,5%, no segundo, 18,75%, no terceiro, alcançando os 20%, no quarto. No caso dos impostos não vinculados ao Fundef (IPVA, ITCM, IR dos servidores estaduais e municipais, ITR e dívida ativa dos impostos), os percentuais serão de 5%, 10% e 15%, respectivamente, no primeiro, segundo e terceiro anos, chegando aos 20% só no quarto ano. Na composição do Fundeb não entram os impostos municipais (IPTU, ISS, ITBI e dívida ativa destes impostos).  
 
A complementação federal (que foi insignificante no caso do Fundef) para o Fundeb só será feita quando o valor por matrícula de cada nível e modalidade de ensino no Fundeb de cada Estado não alcançar o valor mínimo nacional, a ser definido na lei que irá regulamentar o Fundeb. A PEC só define um valor de complementação, de R$ 4,3 bilhões, no quarto ano, embora o anteprojeto de lei da regulamentação do Fundeb e a exposição de motivos da PEC mencionem os valores de R$ 1,9 bilhão, para o primeiro ano, R$ 2,7 bilhões, para o segundo, e R$ 3,5 bilhões, para o terceiro. Na complementação, o governo federal poderá usar 10% da arrecadação nacional do salário-educação (hoje retidos pelo FNDE, em virtude da Lei federal 10.832, de dezembro de 2003), percentual que deve corresponder a cerca de R$ 600 milhões em 2005.  
 
Tal como o Fundef, o Fundeb opera apenas no âmbito de cada Estado e, portanto, não transfere recursos para outras Unidades da Federação, sendo redistribuído entre o governo estadual e os municipais de acordo com o número de matrículas que tenham em quase toda a educação básica (as matrículas nas creches foram excluídas). Esta redistribuição será baseada em 100% das matrículas no ensino fundamental regular a partir do primeiro ano e em 25% (no primeiro ano), 50% (no segundo ano), 75% (no terceiro ano) e 100% (no quarto ano) das matrículas na pré-escola, educação de jovens e adultos e ensino médio. Para a remuneração dos profissionais do magistério da educação básica serão reservados pelo menos 60% do Fundeb, outro traço nada original e que representou um recuo de proposta anterior do MEC, que previa 80%.  
 
O primeiro problema do Fundeb é que, embora se defina como da educação básica, exclui as creches, quebrando, assim, a unidade legal da educação básica, tal como definida pela LDB e desestimulando financeiramente a manutenção e expansão de creches pelas prefeituras. É verdade que as prefeituras, mesmo as que não têm nenhuma ou pouca receita própria (os impostos municipais), poderão muito bem, com os 5% dos impostos federais e estaduais a elas transferidos e que não entrarão na formação do Fundeb, atender às creches existentes ou que venham a ser criadas. A questão é saber se a imensa maioria delas é realmente comprometida em atender às necessidades/reivindicações educacionais da população ou vão de maneira oportunista se limitar a denunciar o descompromisso federal, o qual, embora real, não explica todas as vicissitudes da educação básica, que podem e devem ser atribuídas também ao descompromisso endêmico de governos estaduais e municipais.  
 
Outra fragilidade do Fundeb é que a complementação federal não promete ser significativa porque a disponibilidade de recursos por matrícula em termos nacionais e mesmo em termos estaduais provavelmente não será maior do que no Fundef. É que o impacto positivo do acréscimo de 5% (de 15% para 20%) dos impostos do Fundef (que prevê 15% do ICMS, FPE, FPM, IPI-exportação e LC 87/96), e de impostos novos (IPVA, ITCM, IR dos servidores estaduais e municipais e ITR), será bastante reduzido ou mesmo anulado pela inclusão das matrículas de pré-escola, educação de jovens e adultos (EJA) e ensino médio. Se estiver correta a previsão da receita do Fundeb, divulgada na página do MEC em junho de 2005, no quarto ano a receita total, abrangendo a complementação federal de R$ 4,3 bilhões, seria de R$ 50,4 bilhões, que, divididos pelo total atual de matrículas que comporiam o Fundeb (47.183.080, sem as creches, segundo o Censo de 2004), daria uma média de R$ 1.068, valor pouco superior à média nacional da matrícula no Fundef em 2005 (R$ 1.030), calculado dividindo-se a previsão da receita total do Fundef em 2005 (R$ 31,6 bilhões, com a complementação prevista de R$ 395,3 milhões) pelo total de matrículas no ensino fundamental das redes estaduais, municipais e do Distrito Federal (30.656.132 – Censo de 2004).

Como não há uma definição para os valores posteriores ao 4º ano, a complementação prevista para o período de transição (os três primeiros anos) está longe de ser significativa, porque inclui 10% do salário-educação, equivalente em 2005 a quase 1/3 (cerca de R$ 600 milhões) do valor previsto para o primeiro ano (R$ 1,9 bilhão), e porque este R$ 1,9 bilhão representa em torno de 5,1% dos R$ 36,8 bilhões previstos para o Fundeb (segundo a estimativa divulgada na página do MEC), caso estivesse em vigor em 2005. Se deduzirmos os R$ 600 milhões do salário-educação, cuja aplicação na educação não é opcional, mas compulsória, não sendo pois nenhuma generosidade federal, o montante do primeiro ano seria de cerca de R$ 1,2 bilhão, ou em torno de 3,26% do total de R$ 36,8 bilhões, percentual este próximo do da complementação federal para o Fundef durante vários anos, a qual foi muito inferior ao valor legalmente devido. Em outras palavras, no primeiro ano, a complementação federal para o Fundeb não seria muito diferente do que foi e tem sido (inclusive no governo Lula) para o Fundef.  
 
Quanto à valorização do magistério supostamente garantida pelo percentual mínimo de 60%, cabe lembrar que até hoje não foi feito nenhum estudo demonstrando que este percentual resultará necessariamente em melhoria salarial. Além disso, o Fundeb, embora denominado de valorização dos profissionais da educação, só vincula um percentual para os profissionais do magistério, não os profissionais da educação, categoria mais ampla, que inclui os trabalhadores da educação não envolvidos em funções diretamente pedagógicas dentro da escola. A PEC não é muito precisa quanto aos que supostamente seriam valorizados com o Fundeb, pois emprega três expressões distintas para designá-los: “trabalhadores da educação“, “profissionais da educação“ e “profissionais do magistério“.  
 
Deve-se ressaltar ainda que, como o mecanismo do Fundeb é o mesmo do Fundef, ou seja, é uma redistribuição dos impostos existentes, sem acréscimo de recursos novos para o sistema educacional como um todo, a não ser a nada espetacular complementação federal, os ganhos de uns governos significarão perdas para outros, na mesma proporção, com exceção daqueles onde houver complementação federal, que poderá ser significativa em termos percentuais e mesmo absolutos nas Unidades da Federação que não alcançarem o valor mínimo nacional, porém não em termos nacionais. Assim, naqueles que perderem, 60% do Fundeb muito provavelmente não resultarão em melhoria salarial. Só aqueles que ganharem terão mais condições de melhorar a remuneração dos profissionais do magistério. Entretanto, não há nenhuma garantia de que isso ocorra, como a experiência do Fundef demonstrou, pelo menos no Estado do Rio de Janeiro, em que 60% da receita do Fundef não resultou(a) necessariamente em melhoria salarial, na mesma proporção dos ganhos que as prefeituras tiveram e têm com o Fundef, pelo simples fato de que os governos já gastavam ou alegavam gastar mais do que 60% antes do Fundef e portanto não se sentiam obrigados legalmente a melhorar os salários pagos antes da implantação do Fundef, em 1998. Espertamente, muitas prefeituras no Rio de Janeiro, nas discussões e negociações sobre melhoria salarial ou valorização do magistério, se limitaram aos 60% do Fundef, não levando em conta os demais recursos vinculados à MDE (25% dos impostos não incluídos no Fundef e a parcela de 10% dos impostos não incluída no Fundef, isso se o percentual mínimo da Constituição Estadual ou Lei Orgânica for de 25%). Além disso, no caso do Fundeb, os governos podem comodamente se limitar aos 60%, transformando o mínimo em máximo.  
 
Com base na PEC, na indefinição do valor mínimo nacional e sobretudo no descumprimento generalizado da exigência de aplicação do percentual mínimo em educação pelos governos, é pouquíssimo provável que o Fundeb resolva os problemas crônicos do financiamento da educação pública como um todo, ainda que possa diminuir o desequilíbrio tributário sobretudo entre os municípios dentro de cada Estado, porém não entre regiões e Estados. Será, pois, mais um remendo, a exemplo de tantos outros. 

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