Desafios do mercado editorial

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Envolvido com o mundo dos livros há mais de trinta anos, que ponderações trazer aqui para contribuir com o debate sobre os rumos da indústria editorial em nosso país? O bom senso manda que a primeira delas seja a modéstia de não ter respostas para as questões levantadas. Estamos no início de um novo século, com tanta coisa mudando à nossa volta, que é melhor ter clareza das dúvidas e desafios atuais do que alimentar a crença das certezas. O que trago são alguns pontos de reflexão. 
 
Quando penso que, nos anos 1970, ainda eram utilizadas as linotipos, em que cada barra de chumbo correspondia a uma linha de texto (comprometendo a saúdo dos linotipistas), fica visível a transformação ocorrida nas últimas décadas. Não apenas quanto aos recursos técnicos, como também nos aspectos culturais. Afinal, já faz algum tempo que a transmissão do saber deixou de ser exclusividade do meio impresso. 
 
No caso do Brasil, esse abismo é ainda maior porque tivemos um período sombrio durante a ditadura militar, vigilante quanto a tudo o que se publicava por aqui. A censura não chegava a controlar ostensivamente a publicação de livros (como fazia com os jornais), mas acompanhava de perto a produção editorial e volta e meia intimidava os editores mais ousados – como foi o caso de Enio Silveira, responsável pela antiga editora Civilização Brasileira. 
 
Mesmo assim, contamos com uma ao tradição de editores talentosos e empreendedores de uma cultura editorial pautada na pluralidade de idéias, com a difícil missão de divulgar escritores em âmbito nacional. Dentre eles, podem ser citados Alfredo Machado, Sérgio e Sebastião Lacerda, Caio Graco e Jorge Zahar.  
 
São nomes que merecem ser lembrados como os últimos representantes de um certo “idealismo editorial”, herdeiros da linhagem de José Olympio, em oposição ao “realismo de mercado”, defendido pelos que privilegiam o retorno financeiro como critério central nas decisões cotidianas de uma editora. Já se sabe hoje que a disputa entre as duas vertentes acabou sendo vencida pelo pragmatismo, não por acaso em consonância com o cenário econômico internacional. 
 
Tal como sucedeu nos EUA e na Europa, vem ocorrendo no Brasil uma tendência para a centralização na mão de poucas empresas – seja tanto no campo da publicação, quanto na ponta das grandes redes de livrarias. Algumas são de origem nacional (como Record, Ediouro, Livrarias Siciliano e Saraiva), e outras vêm do estrangeiro na condição de players globais, interessados em difundir os seus títulos e know-how mundo afora (Larousse, Pearson, Planeta, Fnac, etc). Claro que as editoras e as livrarias pequenas continuarão a existir, mas representam cada vez menos no contexto geral. 
 
O fenômeno já existia antes, porém agora alcança uma vitalidade sem precedentes e conta com a agilidade das novas tecnologias. Por decorrência, podemos ver nas livrarias tupiniquins os mesmos títulos que aparecem nas vitrines de Paris, Berlim ou Nova York – boa parte deles impressos na China.  
 
Tudo isso tem o seu lado bom e estimulante, mas somente a médio prazo será possível avaliar até que ponto as mudanças favorecem uma real expansão dos negócios e o fortalecimento da produção intelectual e literária produzida nos trópicos. 
 
Em princípio, nada contra a internacionalização ou concentração, que pode até se tornar um estímulo saudável; desde que haja a contrapartida na ampla difusão do conhecimento produzido por nossos autores e cientistas. 
 
Curiosamente, a transformação do panorama editorial está ocorrendo sem que o setor livreiro tenha resolvido os seus problemas mais agudos, responsáveis pelo marasmo observado ao longo dos últimos 15 anos (conforme estudo dos economistas Fábio Sá Earp e George Kornis, acessível no site da Câmara Brasileira de Livros). Mesmo que os números recentes acenem com uma melhoria dos índices, chega-se à conclusão de que essa indústria não tem conseguido acompanhar o desenvolvimento geral do país.  
 
Para que isso venha de fato a ocorrer, será necessário antes encarar de frente alguns embaraços que continuam a emperrar o crescimento do setor. Questões como a distribuição precária, poucas livrarias, preço elevado, divulgação restrita e vendas insignificantes para bibliotecas permanecem como entraves estruturais que dificultam a efetiva popularização do acesso ao livro, ainda restrito a uma elite de leitores.  
 
A rigor, falta uma política consistente para o incremento da indústria editorial no Brasil. Da parte do governo – ainda que seja comprador de mais da metade dos livros produzidos -, não se observa continuidade na política de incentivos para o segmento. A cada troca de governante ocorrem alterações nos programas de aquisição e nas regras do jogo. 
 
O Estado igualmente tem se omitido quanto à arbitragem e à discussão de tópicos importantes que poderiam fortalecer a cadeia do livro, como no que se refere à criação do preço único, incentivos para autores nacionais, fortalecimento das livrarias especializadas e de pequeno porte. É quase impossível encaminhar estes assuntos sem que alguns interesses sejam contrariados. 
 
A iniciativa privada, por sua vez, fica restrita a uma visão de curto prazo e deixa a desejar no cumprimento do papel cultural que seria de se esperar. Chega a ser lamentável o fato de as associações de classe das editoras não terem cumprido a promessa de contribuição para o Fundo da Leitura, logo após a desoneração de impostos promulgada pelo Ministério da Fazenda. As boas intenções, uma vez mais, se limitaram aos discursos. 
 
O que está em jogo não é apenas um pequeno segmento da economia, mas uma parcela do imaginário brasileiro que repousa e sobreviva nas páginas impressas. E a vida dessas obras completa-se quando chegam às mãos dos leitores, pois somente dessa maneira encerram o ciclo que teve origem na intuição e sabedoria dos escritores. 
 
Ou será que continuaremos a repetir no vazio o bordão criado por Monteiro Lobato há quase um século? Já não se pode mais dizer que um país se faz com homens e livros, mas a leitura continua a ser uma forte aliada no desenvolvimento das mentalidades e aptidões. Quanto mais democrática e criativa for a produção editorial, tanto melhor será o país.  
 
 
 
Fernando Paixão foi editor da Ática durante 35 anos, até o fim do ano passado

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