‘As escolas e os professores são insubstituíveis’

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O português António Nóvoa é reconhecido internacionalmente como um grande pensador da educação. Doutor em Ciências da Educação e História Moderna e Contemporânea, foi presidente do Comitê de Pesquisa e Redação da Comissão Internacional sobre os Futuros da Educação da UNESCO, responsável pelo relatório “Reimaginar nossos futuros juntos: um novo contrato social para a educação”, recentemente publicado, apontando caminhos para a transformação da educação e da escola. Em entrevista exclusiva a Abrelivros em Pauta, Nóvoa – que desenvolve pesquisas sobre história da educação e formação de professores – diz que não se pode negar a importância da educação em casa ou do uso das tecnologias. “Mas nem a casa, nem as tecnologias substituem a escola, enquanto espaço comum no qual as crianças se educam umas com as outras”, destacou o reitor honorário da Universidade de Lisboa e professor catedrático do Instituto de Educação da mesma instituição.

Quais os principais desafios da educação para o século XXI?

Hoje, a grande dificuldade que temos é preparar os alunos para um mundo desconhecido. A nossa única certeza é a incerteza. Os alunos têm de ser formados para viverem o inesperado, para enfrentarem situações que não conseguimos antecipar. O melhor que podemos fazer é dar-lhes os instrumentos para compreenderem o mundo, para pensarem criticamente e para se adaptarem a novas realidades.

Por outro lado, face ao crescimento da intolerância, do ódio e dos conflitos, temos de ser capazes de promover a cooperação, a convivialidade e a cidadania. A consciência da interdependência é central. Todos dependemos de todos. Ninguém se educa sozinho. Precisamos dos outros para nos tornarmos humanos. São as diferenças que nos educam. A escola, como diz Olivier Reboul, serve para sermos livres e não estarmos sós.

O que estudos da UNESCO mostram?

Os estudos da UNESCO mostram a existência de enormes desigualdades no mundo. A escola ainda não chegou a muitas crianças em muitas regiões. Estimativas recentes apontam para cerca de 250 milhões de crianças e de jovens fora da escola. É uma tragédia.

Mesmo entre aqueles que frequentam a escola, a UNESCO estima que metade (cerca de 800 milhões de alunos) sai da escola aos 14 ou 15 anos de idade, sem ter adquirido competências mínimas de literacia e de numeracia. É um colapso colossal de um modelo escolar que, há dois séculos, impôs a escola obrigatória e prometeu educar todas as crianças.

Finalmente, a UNESCO revela, nos seus últimos estudos, que faltam 60 milhões de professores no mundo. É um retrato profundamente negativo da situação da educação. Por isso, a UNESCO tem vindo a declarar a necessidade de um novo contrato social da educação.

O que é o novo contrato social da educação, defendido pela UNESCO?

Recuemos ao século XIX. Nessa época, a escola definiu-se e consolidou-se em torno de três pilares: a cidadania nacional, a obrigatoriedade escolar para as crianças e um modelo escolar em torno da sala de aula.

Entremos agora no século XXI: a escola já não diz respeito apenas à cidadania nacional, mas à consciência de uma cidadania global baseada nos direitos humanos; a educação já não se dirige apenas à infância, mas estende-se a todas as idades da vida; o modelo escolar centrado na sala de aula já não é suficiente e precisa ser renovado por meio de novos ambientes educativos.

Brevemente, o novo contrato social da educação procura criar as condições para que todos, todos mesmo, possam ter sucesso na escola, isto é, possam levar o mais longe possível as suas possibilidades de educação e de desenvolvimento como pessoas. Há cinco ideias centrais neste novo contrato: cooperação, convergência, colaboração, convivialidade e cidadania.

O que o sr. aponta como desafios para os professores?

Talvez os desafios para os professores se possam apresentar a partir das cinco ideias centrais do novo contrato social da educação.

1.º Praticar uma pedagogia da cooperação, isto é, conceber a escola não apenas como um lugar de aulas, mas como um lugar de trabalho cooperativo, como um espaço para o trabalho conjunto entre alunos e entre professores e alunos.
2.º Desenvolver um currículo da convergência, isto é, ir além da tradicional grade curricular por disciplinas separadas e compreender a importância de trabalhar os grandes temas e problemas da humanidade, do conhecimento, da cultura e da ciência, a partir de uma convergência das disciplinas.

3.º Organizar a profissão docente de forma colaborativa, isto é, concebendo o trabalho educativo e pedagógico não de forma isolada, cada professor dentro da “sua” sala de aula, mas de forma conjunta, com vários professores a trabalharem simultaneamente com vários grupos de alunos em novos ambientes educativos.

4.º Construir uma escola convivial, isto é, uma escola onde se aprende a conviver, a viver com os outros, no respeito pelas diferenças e diversidades, construindo ambientes escolares democráticos, inclusivos e participativos, de vida e de trabalho em comum.

5.º Promover uma educação ligada à cidadania, isto é, compreender que há mais educação para além da escola, e ligar o trabalho escolar à cidade, à cidade educadora, a um espaço público de educação que é mais amplo do que o espaço escolar.

Qual foi o impacto da pandemia sobre a educação?

Apesar de terem sido publicados milhares de estudos sobre o impacto da pandemia, a verdade é que ainda não sabemos. Sabemos, obviamente, que teve efeitos devastadores no afastamento da escola de milhões de alunos, sobretudo meninas entre os 11 e os 14 anos, que não voltaram à escola depois da pandemia. Sabemos, obviamente, que houve atrasos nas aprendizagens, provavelmente irrecuperáveis. Há toda uma geração afetada pela ruptura educacional causada pela pandemia.

Mas ainda não conseguimos perceber devidamente todas as consequências da pandemia, nomeadamente nas crianças mais novas, que se viram privadas de dimensões relacionais e afetivas decisivas para a sua educação.
Conscientes deste “desconhecimento”, temos de estar muito atentos ao comportamento dos alunos nos próximos anos e reforçar, desde já, todas as dinâmicas de uma pedagogia da cooperação, de vida em comum na escola e de valorização das atividades que ligam “saber e sentir”, título do último livro do neurocientista António Damásio. A dimensão humana, solidária, da educação adquire, hoje, uma centralidade ainda maior.

O que o sr. acha de teses que defendem educação em casa e uso intensivo de tecnologias na educação?

Ninguém pode negar a importância da educação em casa ou do uso das tecnologias. Mas nem a casa, nem as tecnologias substituem a escola, enquanto espaço comum no qual as crianças se educam umas com as outras.
A importância da educação na escola é ser diferente da educação em casa. Na escola, estamos entre pessoas diferentes, não entre parentes ou semelhantes. Na escola, conhecemos realidades, culturas e formas de pensar diferentes daquelas que temos em casa. O interesse da escola reside, justamente, nesta diferença que nos abre ao mundo.

As tecnologias são uma realidade presente, onipresente, na nossa vida. E também na educação. De pouco nos adiantam os discursos otimistas ou pessimistas. Uns, acreditando que as tecnologias vão ser a solução mágica para os problemas educativos. Outros, recusando o seu uso em qualquer circunstância. Precisamos tomar consciência das possibilidades e dos perigos das tecnologias e de compreender que o mais importante é o seu uso pedagógico, é a forma como as usamos pedagogicamente. Para isso, as escolas e os professores são insubstituíveis.

Qual sua avaliação sobre o momento da educação no Brasil, e as políticas públicas destinadas para este campo?

O Brasil tem leis, pessoas e instituições extraordinárias no campo da educação. Mas parece faltar um compromisso social mais forte com a educação, sobretudo com a educação pública. E parecem faltar políticas públicas consistentes e continuadas. É como se existissem todas as peças necessárias para construir uma “boa máquina”, mas ninguém tem capacidade para as juntar e montar. É preciso pôr fim ao desperdício de energias, de vidas e de possibilidades que tem caracterizado grande parte da história da educação brasileira. O Brasil precisa de um sobressalto cívico, de uma mobilização nacional em torno da educação pública precisa da coragem de toda uma geração para concretizar a escola pública sonhada por alguns dos maiores educadores do século XX: Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire.

O sr. acaba de lançar um novo livro, “Professores – Libertar o futuro”. Como resumiria a principal mensagem?

A mensagem é simples. Podemos perguntar, uma vez mais, “para que serve a educação?” E podemos dar mais uma resposta: para libertar o futuro, para libertar o futuro das pessoas e das sociedades, para libertar as possibilidades de futuro no plano individual e coletivo. E, para isso, precisamos de professores.

Mas, para sermos coerentes com este propósito, temos também de libertar o futuro dos professores, isto é, de lhes dar mais futuro, de celebrar com eles um contrato de futuro, de lhes dar as condições concretas para que possam cumprir a sua missão. Pedimos muito aos professores, mas damos muito pouco.

O livro é um gesto de confiança nos professores, construído em dez capítulos. Cada um leva como título o lema do Dia Mundial do Professor, nos últimos dez anos, entre 2013 e 2022. Não inclui o lema do Dia Mundial do Professor de 2023, que confirma a mensagem do livro: Os professores de que precisamos para a educação que queremos. Dito de outro modo, só concretizaremos a educação que queremos se tivermos professores à altura deste desafio.

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