Agonia e salvação

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O mercado editorial brasileiro é um Mercedes circulando com rodinhas de rolimã. A metáfora é usada pelos professores Fábio Sá Earp, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e George Kornis, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Juntos, eles acabam de finalizar a pesquisa mais completa e detalhada sobre o universo do livro já feita no Brasil. O estudo demorou um ano e meio para ficar pronto, e foi bancado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES. A idéia é usá-lo para definir novas políticas de investimento no setor. Os resultados serão divulgados oficialmente na quinta-feira 16, no Rio de Janeiro, durante a abertura da Primavera dos Livros, feira na qual títulos de pequenas e médias editoras são vendidos com descontos. ÉPOCA antecipa os números e as conclusões – nada animadoras – dos pesquisadores. Segundo Earp e Kornis, o panorama é nebuloso. 
 
Reunindo as estatísticas aferidas anualmente pela Câmara Brasileira do Livro e pelo Sindicato Nacional de Editores de Livros, comparando-as às de dezenas de outros países, entrevistando editores, livreiros, donos de gráficas e bibliotecários, os professores chegaram ao consenso de que nosso mercado editorial é completamente incompatível com o tamanho e a importância do país. ´´As editoras ainda são negócios familiares, por vezes muito amadores, praticamente empresas de fundo de quintal quando comparadas a organizações profissionais do exterior´´, afirma George Kornis, professor de Políticas Sociais da Uerj. 
 
Seu colega completa o cenário de desalento. Segundo Earp, coordenador do Grupo de Pesquisa em Economia do Entretenimento da UFRJ, o Brasil tem uma das piores políticas de bibliotecas públicas do mundo. ´´As compras do governo são muito tímidas, precisam ser triplicadas. Todo o processo editorial brasileiro é atrasado. E a leitura, infelizmente, ainda é considerada frescura por aqui.´´ O trabalho pretende acabar com essa visão do produto: livro, afirmam os estudiosos, é gênero de primeira necessidade. 
 
´´O desempenho do mercado editorial deve ser tratado como um problema para o país, precisa virar uma dor de cabeça´´, afirma Kornis. De fato, problemas aparecem ao longo de toda a pesquisa. Há dados assustadores. Um deles mostra, por exemplo, que entre 1995 e 2003 o faturamento das editoras nacionais diminuiu 48%, e a quantidade de exemplares vendidos caiu pela metade. É verdade que, no mesmo período, a economia como um todo teve desempenho medíocre. Mas no mercado do livro os resultados ficaram muito aquém do resto. ´´Uma queda desta proporção seria fatal em qualquer outro setor´´, acredita Earp. 
 
É preocupante, também, a quantidade obscena de livros encalhados, cujo destino muitas vezes é ser picotado para reciclagem de papel. Só em 2003, 44 milhões de unidades não foram vendidas – 15% da produção total. Os exemplares poderiam ser comprados a preços mais baixos para bibliotecas. Só que isso não acontece. ´´As editoras parecem preferir os livros no porão a ter de baixar o preço´´, lamenta Kornis. 
 
A falta de organização do setor também não condiz com a importância do produto. As grandes casas de publicação nacionais não têm o hábito de fazer pesquisas de mercado. Trabalham com a garantia de que quatro ou cinco títulos vão vender como best-sellers a cada ano – e assim compensar o comportamento quase sempre insatisfatório de centenas de outros lançamentos. ´´É inacreditável´´, continua Kornis, ´´que um empresário se proponha a trabalhar com uma margem de erro tão cavalar.´´ Comportamento semelhante em outras atividades certamente levaria qualquer negócio à bancarrota. 
 
Há, é claro, a velha e procedente reclamação de que o livro, no Brasil, é muito caro. Na verdade, quando ä comparado ao preço de outros países, o valor médio do exemplar brasileiro é até pequeno (US$ 2,50 contra US$ 14 nos Estados Unidos e US$ 10 na Austrália). Mas, por aqui, a renda é muito inferior: na hora de escolher o que sai do orçamento doméstico, o livro está no topo da lista de itens dispensáveis. 
 
Earp explica que as tiragens são muito pequenas, e isso encarece o produto. Mas há inúmeras maneiras de baratear o processo. ´´É inconcebível que, num país do tamanho do Brasil, uma remessa de livros saia de São Paulo e tenha de ir de caminhão até o Acre´´, afirma. ´´Com a tecnologia de hoje, é possível abrir gráficas em outros Estados, enviar as provas dos livros por computador e imprimir os exemplares no local. É uma forma de gerar emprego e baixar o preço final.´´ 
 
O levantamento revelou ainda algumas curiosidades. Da pesquisa surgiu, por exemplo, o gigantesco mercado de venda no sistema de porta em porta – cuja oferta é centrada basicamente na Bíblia e em títulos religiosos. Enquanto todas as editoras do país reúnem 22 mil funcionários, os vendedores que circulam pelas ruas somam mais de 30 mil pessoas. ´´É um exército silencioso, que a gente quase nunca vê´´, explica Earp. 
 
Culpar os índices de analfabetismo (no país, 15 milhões depessoas com mais de 15 anos de idade não sabem ler) pelo cambaleante equilíbrio do setor é desculpa esfarrapada. ´´Milhões de brasileiros alfabetizados não lêem porque não são estimulados, ou porque vivem em cidades onde não há bibliotecas´´, diz Earp. Segundo levantamento recente da Unesco, cerca de mil municípios brasileiros não têm sequer uma coleção pública – o equivalente a 19% das cidades do país. Está aí o grande abacaxi a ser descascado pelo atual governo. Mas há um alento: é possível fazê-lo. É preciso dinheiro. 
 
O Ministério da Cultura já separou R$ 25 milhões de seu orçamento para o Plano Nacional do Livro e Leitura, apelidado de Fome de Livro, e promete zerar o número de municípios sem bibliotecas. O programa prevê ainda uma redução nos tributos do setor editorial e parcerias para compra de exemplares para bibliotecas (duas formas de aumentar as tiragens). Mas os autores da pesquisa sugerem que se faça mais. 
 
A criação de um vale-livro, uma espécie de subsídio para estudantes e professores universitários semelhante ao vale-transporte, é uma idéia. Outro incentivo viria de uma linha de crédito de R$ 50 milhões para editoras e – mais importante – da criação de uma ´´agência regulamentadora´´ para o setor. Sabendo que a simples menção desse termo causa arrepios, Kornis se apressa em esclarecer: ´´Não estamos pregando o dirigismo´´. A proposta, diz, é encontrar um equilíbrio entre ´´a barbárie do mercado e o estatismo furioso´´, usando a agência para mediar discussões entre os envolvidos no processo. Sonha-se com o dia em que tudo se resolva a contento, os números possam ser deixados de lado e a maré esteja boa o suficiente para fazer o que realmente interessa: ler. 
 

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