A presidente que quer mudar a governança do FNDE

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Fernanda Pacobahyba não se importa que a referência tenha saído da moda. “Sou intendente da Aeronáutica”, avisa ao começar a descrever o início de sua vida profissional. Aos 44 anos, a nova presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) está desde 1º de janeiro no comando de um caixa de R$ 84 bilhões ante o qual fraquejaram tanto expoentes do Centrão quanto pastores evangélicos. Ao longo de duas horas de conversa não usa uma única vez a expressão “céu de brigadeiro” para descrever sua trajetória ou a missão que tem pela frente. Azul mesmo só o All Star que usa para trabalhar.

Foi do FNDE que saíram os cálculos para o novo valor da merenda escolar. O valor de R$ 0,36 foi explorado ao longo da campanha. Quinze dias antes de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva presidir a cerimônia de anúncio, já avisava que dava para ir até R$ 0,50, valor que acabaria confirmado na última sexta-feira. No geral, o ajuste ficou 9% acima do IPCA dos cinco anos em que a merenda ficou congelada. Os R$ 5,5 bilhões que serão gastos a mais foram previstos pela PEC da transição. Muitos municípios complementam para chegar ao valor de R$ 1 por refeição, mas 83% das prefeituras só contam mesmo com este recurso da União. Fernanda não doura a pílula: “É a escala que viabiliza a merenda, mas ainda é pouco”.

É a escala também que viabiliza o programa do livro didático, um dos maiores do gênero no mundo. Já chegou circular, por ano, 150 milhões de livros, mas passou por enxugamento sob Bolsonaro. Ao entrar no FNDE, Fernanda se deparou com o mesmo livro pelo qual pagou R$ 150 para o filho, sendo comprado pelo fundo por R$ 8.

É a escala também que atrai a cobiça sobre o fundo. Ao longo do último governo a coabitação entre cinco ministros da Educação, egressos do bolsonarismo raiz, e gestores indicados pelo Centrão produziu façanhas no FNDE. O fundo virou freguês
dos órgãos de controle. É longa a lista de malfeitos: licitação de laptops que previu 117 equipamentos por aluno para uma escola em Minas Gerais, kit robótica para escolas onde faltam água encanada, 2,5 mil escolas inacabadas, ônibus
superfaturados em mais de 50% e até bíblias estampadas com fotos do ex-ministro Milton Ribeiro e de pastores que foram gravados pedindo barras de ouro a prefeitos.

Este histórico acabou por impulsionar a blindagem. Das seis diretorias que compõem o FNDE, Fernanda já nomeou quatro. A primeira delas, Flávia de Holanda Schmidt, sua colega de Aeronáutica, deixou o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) para assumir a diretoria de Gestão, Articulação e Projetos Educacionais. As outras três diretorias serão ocupadas por servidores de carreira: Alan Carlo (financeira), Delson Silva (tecnologia) e Leilane Mendes (administração). Houve duas concessões aos partidos. As diretorias do Fundeb e de atividades educacionais vão, respectivamente, para o PV e para o União Brasil.

Para evitar que o FNDE volte a frequentar as páginas da escandalogia nacional, Fernanda Pacobahyba pretende propor um decreto presidencial mudando a governança do fundo para normatizar seus procedimentos como proposto nas auditorias do Tribunal de Contas da União. A proposta é que as decisões estratégicas, de investimento e de estruturação dos programas, não possam mais ser tomadas individualmente, mas passem por um colegiado dos seis diretores e da presidente do FNDE.

“Não tem um servidor do FNDE envolvido”, diz Pacobahyba sobre a ficha corrida do órgão que acaba de assumir. Além das mudanças na governança, conta com a tropa que comanda – mil servidores, entre os quais 350 de carreira – para enfrentar as pressões. Diz que não tinha tido, até aqui, a experiência de trabalhar num órgão em que os servidores entram pela noite indiferentes às limitações da jornada de trabalho. Sua carreira inclui a intendência da Aeronáutica e a Secretaria da Fazenda do Ceará, carreira em que os servidores atingem o teto do funcionalismo com alguns anos de Casa. Foi a reputação construída em ambas que pavimentou sua chegada ao FNDE.

Filha de um professor e de uma bancária, Fernanda nasceu em Crato, entre quatro irmãos, e frequentou, em Fortaleza, escolas que têm por tradição disputar colocações nos cursos superiores de excelência. Queria fazer sociologia na USP, mas
sua escola a inscreveu no vestibular da Academia da Força Aérea, de Pirassununga (SP), equivalente, na Aeronáutica, ao que a de Agulhas Negras é para o Exército. Tinha 17 anos e vontade de sair de casa. Lá teria casa, comida e roupa lavada. Foi.

Ingressou, em 1996, na intendência, carreira encarregada da gestão, dos contratos e das compras e por onde a Aeronáutica achou por bem iniciar a entrada de mulheres, com sua turma, em busca de mais transparência. Não estava acostumada à disciplina militar, mas se a experiência lhe tivesse traumatizado não teria se casado com dois aviadores.

O primeiro casamento lhe deu Luis Felipe, 19 anos, estudante de medicina no Crato. O segundo, com o ex-piloto da Força Aérea Brasileira e hoje consultor de segurança de voo em aeroportos Marcus Pacobahyba, primeiro lhe deu o sobrenome, de origem indígena (“banana amadurecida”). Depois, lhe deu Marcus Fernando, seu caçula, de 11 anos.

A saída da Aeronáutica aconteceu quando voltou a Fortaleza. Depois de ter servido em Belém, onde cursou direito e nasceu seu primeiro filho, foi requisitada por BJ, como se refere ao almirante Carlos Baptista Junior. Comandante da Aeronáutica no governo Jair Bolsonaro, BJ, à época, era apenas um almirante preocupado em colocar a Base Aérea de Fortaleza nos eixos.

Em 2009, cansada da vida militar, fez concurso para a Fazenda do Ceará. Depois de ingressar na carreira, fez doutorado em direito tributário na PUC-SP e, em dez anos, chegou ao topo. Ao longo de todo esse tempo o secretário da Fazenda era o deputado Mauro Benevides (PDT-CE), que acabou por escolhê-la para chefiar a consultoria da secretaria e avalizar sua escolha para comandar o fisco no segundo governo Camilo Santana, em 2018.

Tornou-se a primeira mulher a comandar a Fazenda do Estado. Foi ainda a primeira a colocar três auditores na cadeia. O embate com o sindicato dos fazendários não tardou. Foi alvo de dez ações judiciais por parte de associações de servidores contra as quais teve que atuar como sua própria advogada.

Fernanda credita a origem dos embates à cultura tributária no país, que, por autoritária – “Ou paga ou vai preso” – acaba por desconhecer os direitos constitucionais. Vê a burocracia tributária, em grande parte fomentada pela guerra fiscal, a serviço de dois tipos de auditores, o bitolado, que multa, e-o-contribuinteque-se-vire, e o corrupto, que cria dificuldade para vender facilidade. E o resultado, diz, é que o Brasil tem R$ 5 trilhões em contenciosos tributários.

Com este motor, refez todos os regulamentos da fazenda cearense. O auditor foi proibido de lavrar diretamente o auto de infração. Foi instruído a primeiro fazer o monitoramento da empresa, dar um tempo para que se enquadre na regulação e só então, face à resistência, multar. De 300 autos de infração por mês, a secretaria passou a registrar 60. A recuperação dos tributos, que era de 1% com os autos de infração, passou a ser de 20%.

Foi este desempenho que pavimentou seu caminho para o FNDE. Camilo Santana não terá como levar a cabo as políticas educacionais sem dar efetividade ao gasto. “Ela vai dar conta de enquadrar condutas, procedimentos e de tudo que tiver que fazer. Tem experiência nisso”, diz seu ex-chefe, Mauro Benevides Filho.

Com um jeito despachado, que emenda uma frase na outra, Fernanda Pacobahyba não vê mistérios na função: “Vamos montar os indicadores que vão nortear os critérios do gasto e aplicá-los, simples assim”. É o ministério que desenha as políticas, mas é o FNDE que estabelece os critérios para as compras e contratações que acabam servindo de parâmetro para a federação. Daí porque se cobiça tanto o fundo.

Recorre a uma frase atribuída ao pintor americano Leonard Thiessen, “a simplicidade é o último grau da sofisticação”, para explicar que pretende recorrer às empresas de transporte coletivo, que estão em dificuldades por causa da “uberização” do transporte, para estabelecer parcerias no transporte escolar. Pretende ainda ouvir os pais para redefinir os critérios da política de transporte escolar. Guia-se pela percepção de que Brasília é muito encastelada e que Estados e municípios são mais eficientes na ausculta pública.

A mesma lógica que leva o FNDE a recorrer a estradas pedagiadas em São Paulo, barcos nas aldeias indígenas no Amazonas e búfalos na Ilha de Marajó para a entrega do material didático, é o que a faz concluir que a construção das escolas não pode ter um único critério. As escolas de São Leopoldo (RS) não podem ser iguais às de Mossoró (RN) ou àquelas das comunidades indígenas, erguidas sem quaisquer especificidades.

“Tratar todo mundo igualmente não traz igualdade”, diz. O padrão usado no FNDE, por exemplo, é o de terrenos de 80 x 80 metros. Acontece que há muitas comunidades instaladas nas encostas de morros, por exemplo, que não têm escolasbporque não dispõem de um terreno nessas dimensões. São casos em que diz ser necessário verticalizar, mesmo que, para isso, a obra seja encarecida.

Há dois meses e meio no cargo, a nova presidente do FNDE cultiva ambições como a acessar o UNOPs, programa das Nações Unidas destinado a regiões desprovidas de serviços públicos básicos, para dar cabo das escolas inacabadas em todo o país – são quase 4 mil.

A maior dificuldade para concluí-las é que, pela regulação do fundo, os municípios devem devolver os recursos recebidos à União. O governador de um Estado quer concluir 73 quadras de esporte inacabadas em prefeituras que receberam recursos
do FNDE e está impedido. A interdição, diz Fernanda, será revogada.

Desde que assumiu, já quitou quase toda a dívida do FNDE com obras. Dos R$ 684 milhões em dívidas, restam R$ 80 milhões. Segundo Camilo Santana, é mais do que foi pago pelo fundo ao longo de todo o ano de 2022. “Se as medições foram feitas e
a obra, contratada e atestada pelo fundo, o contrato tem que ser pago em 30 dias”. Fala com régua e compasso. Se os indicadores de educação dependem de o dinheiro chegar na ponta, a melhora está encomendada.

Publicado por Maria Cristina Fernandes – Econômico Valor em 13/03/2023.

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