Educação não pode ser melhor do que os professores, afirma Haddad

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O cientista político Fernando Haddad é um dos ministros mais bem avaliados do governo Lula em todas as pesquisas de opinião. Não deixa de ser surpreendente, porque sua pasta, a da Educação, é um gigante difícil de abraçar, com desafios igualmente enormes. E, depois, porque, embora com recursos equivalentes a 5% do PIB, volume razoável para qualquer país, educação, no Brasil, exceto em algumas ilhas de excelência, ainda é sinônimo de baixa qualidade e, no geral, alguma coisa alguns passos atrás dos outros países com os quais devemos nos comparar.  
 
Filho de imigrantes libaneses, paulista, 45 anos, Haddad se declara, sem que se pergunte, de esquerda. Formado em Direito na Universidade de São Paulo, sua tese de doutorado, de meados dos anos 90, na Faculdade de Filosofia também da USP, faz uma atualização do materialismo histórico à luz das teorias do filósofo alemão Juergen Habermas. O mestrado, na Faculdade de Economia, da mesma USP, versou sobre aspectos sociais da economia soviética.  
 
Haddad deixou a Universidade de São Paulo, onde era professor de Ciência Política, em 2000, para trabalhar com João Sayad, na secretaria de Finanças da Prefeitura de São Paulo, no governo petista de Marta Suplicy. Com a chegada de Lula à presidência, foi para Brasília, como secretário-executivo do MEC, então comandado pelo hoje ministro da Justiça, Tarso Genro, em 2003. Foi nomeado ministro há exatos três anos, em julho de 2005. 
 
O grande desafio do ministro é melhorar a qualidade do ensino no Brasil. Repetência, evasão, baixa escolaridade, defasagem entre a faixa etária e a série cursada são os sintomas a serem enfrentados. Para superar esses desafios, Haddad se armou com um diagnóstico e um instrumento. 
 
Segundo Haddad, políticas educacionais bem sucedidas são sistêmicas e integradas, exigindo esforço concomitante em todas as etapas do ciclo educativo – da creche à pós-graduação.  
 
“A idéia de que focar primeiro na educação fundamental, para depois atacar o resto, ainda tem muitos adeptos, mas é totalmente equivocada e está na base dos nossos erros”, diz o ministro. “A educação só pode ser igual ou pior do que os professores, melhor, por definição, é impossível”.  
 
A conclusão do ministro: “É preciso investir, crescentemente, no conjunto”. Isso significa não só investir nos professores, mas, sem dúvida, investir mais forte neles. Dá para entender, por isso mesmo, onde se insere o recente – e já polêmico – piso nacional de R$ 950 mensais para os professores brasileiros.  
 
O sucesso dessa política integrada, no entanto, depende da aplicação dos instrumentos da avaliação. Avaliar bem e com transparência, na visão de Haddad, é o eixo organizador da melhoria, necessariamente gradual, da qualidade do ensino. “Sem recursos, e recursos crescentes, não se consegue reformar para melhor a educação pública”, afirma Haddad. “Mas sem resultados, os recursos nem chegam ou, se chegam, são desperdiçados”.  
 
Durante mais de duas horas, numa manhã de clima especialmente seco em Brasília, Fernando Haddad falou, com exclusividade ao colunista do Último Segundo José Paulo Kupfer sobre os problemas, os desafios e as perspectivas da educação brasileira.  
 
No final da conversa, ele observou nunca antes ter tido a oportunidade de expor tão amplamente suas idéias, dúvidas, ações, resultados e perspectivas da área que coordena, uma das mais críticas para o desenvolvimento do País.  
 
A entrevista com Fernando Haddad foi dividida em duas partes. A seguir, os principais trechos da primeira parte. 
 
iG – O que vem primeiro: crescimento ou educação? 
 
Fernando Haddad
– Estatisticamente falando, se pode dizer que existe uma forte correlação entre as duas variáveis. Os países que fizeram diferença em duas ou três décadas – Irlanda, Coréia, Japão – não cometeram os erros que nós cometemos. No período de alto crescimento, eles aumentaram os recursos em educação. Nós crescemos nos anos 50, 60 e 70 e não destinamos recursos de uma parte do crescimento em volume suficiente para a formação educacional da população. Estamos fazendo isso agora. Estamos conseguindo compatibilizar crescimento com formação, aplicando parte do crescimento em educação. Por isso, sou otimista. O Brasil está entrando num processo de crescimento sustentável e, aplicando recursos crescentes em educação, poderá transformar crescimento em desenvolvimento. 
 
iG – O problema da educação básica, no Brasil, não é mais o da oferta de vagas, mas o da manutenção das pessoas na escola, o atraso escolar, enfim, a qualidade do ensino. Como resolver o problema?  
 
FH
– Entre 1995 e 2001, quando passou a ser possível medir, comparativamente, a qualidade do ensino, verificou-se uma queda nessa qualidade, medida pela proficiência em português e matemática. Na época, atribuiu-se o problema à própria inclusão de alunos em massa nas escolas. Mas eu reputo esse diagnóstico muito equivocado, até porque, quando a medição foi feita, a onda inclusiva já havia ocorrido. 
 
iG – Qual seria a explicação correta? 
 
FH
– Em minha opinião, nós cometemos alguns equívocos graves no passado recente e ainda há quem insista no erro. O mais grave deles foi fomentar uma determinada idéia de educação que opunha educação superior à educação básica, como se fosse possível optar por um nível de ensino em detrimento do outro. O que a experiência internacional demonstra é que países bem sucedidos na educação adotaram visões sistêmicas e integradas. As reformas educacionais de sucesso, que nunca foram revoluções, porque nunca aconteceram de um ano para outro, mas se deram no curso de pelo menos uma geração, não só adotaram essa visão sistêmica como garantiram níveis crescentes e concomitantes de investimento em todas as etapas do processo de escolarização.  
 
iG – O que se pode entender por visão sistêmica? 
 
FH
– A experiência internacional comprova que só investindo, ao mesmo tempo, da creche à pós-graduação é que se pode ter uma educação de qualidade. Quando um país faz isso para valer, não só na retórica, ou seja, com investimentos consignados em orçamento para todas as etapas do ciclo educativo, poderá conseguir, ao longo de pelo menos uma geração, alcançar um estágio de educação de qualidade. 
 
iG – Quer dizer que a idéia tão generalizada de que é preciso primeiro investir na educação básica para depois cuidar dos outros níveis é equivocada? 
 
FH
– Isto é um absurdo em termos. Para começar, porque não existe um sistema educacional melhor do que a qualidade dos professores – ele pode ser igual ou pior, melhor impossível, por definição. Se os professores têm que ser bem formados no nível superior, não há como dissociar uma coisa da outra. E o Brasil procurou dissociar com o chamado foco na educação básica em detrimento da educação superior. 
 
iG – Por falta de recursos? 
 
FH
– Também por falta de recursos. Não por acaso, a qualidade da educação cai, a partir de 1995, com a introdução, em 1994, da figura da desvinculação das receitas da União (DRU). Dezenas de bilhões de reais foram deslocados do ministério da Educação nesse período. E, então, segmentamos e fragmentamos o ciclo educacional. Passamos a só ter olhos para a educação fundamental, de um lado, e para a pós-graduação, no outro.  
 
Quando abandonamos essa visão equivocada e passamos a desenvolver programas em todos os níveis de ensino, o que se verificou, pela primeira vez entre 2005 a 2007, foi uma melhoria consistente de todos os indicadores de qualidade. Melhorou a taxa de aprovação, houve queda tanto na repetência quanto na evasão. Melhoraram os níveis de proficiência em matemática e em língua portuguesa, nas três séries avaliadas – a quarta, a oitava e a terceira do ensino médio. Quando você passa a considerar a educação na sua totalidade você passa a colher os frutos. 
 
iG – Poderia dar exemplos do que significa “investir para valer igualmente em todo o ciclo educacional”?  
 
FH
– O antigo fundo de financiamento da educação focava no ensino fundamental e nós o substituímos por um fundo que foca no ensino básico. Saiu o Fundef e entrou o Fundeb. O que está por trás da troca de letras não é pouco. É a inclusão da educação infantil e do ensino médio no fundo. É também a complementação dos recursos da União, que foi decuplicada. É ainda a diferenciação do coeficiente de distribuição do dinheiro por matrícula, valorizando a escola que oferece tempo integral. Dependendo do tipo de matrícula, o município e o Estado recebem mais ou menos recursos. Quando é de tempo integral ele recebe mais.  
 
iG – Esse dinheiro a mais veio de onde? 
 
FH
– Veio do orçamento da União. A média de complementação da União, durante os dez anos de vigência do Fundef, foi de R$ 500 milhões anuais. Agora em 1º de janeiro de 2009 a complementação da União chegará a R$ 5 bilhões ao ano – dez vezes mais. Os recursos estão sendo aplicados também para equalizar as oportunidades de educação no que diz respeito às regiões mais pobres do País. Veja que por trás dessa letrinha tem uma visão diferenciada de investimento em educação.  
 
iG – Mas isso é suficiente para resolver o problema da qualidade do ensino no Brasil? 
 
FH
– Vou dar outros exemplos. Vários programas de apoio estavam restritos ao ensino fundamental. Vou citar alguns: transporte escolar, merenda, Bolsa-Família e livro didático, que só existiam para o ensino fundamental. Todos estes programas de apoio foram estendidos a toda a educação básica. É uma visão de educação básica que não vê as etapas compartimentadas – educação infantil, ensino fundamental e ensino médio. A ação de governo precisa alcançar o conjunto da educação básica. A União nunca teve, por exemplo, um programa de financiamento da expansão da rede física de creches e pré-escolas. Criamos o Pró-Infância com o objetivo de expandir a rede pública de creches e pré-escolas. Está provado que a educação infantil repercute no desempenho do aluno ao longo das demais etapas do processo educacional. 
 
iG – A implantação do ensino fundamental de nove anos está no ritmo previsto? 
 
FH
– O ensino fundamental de nove anos pode parecer uma coisa lateral. Mas todos os países da América Latina, para não citar o mundo desenvolvido, têm Educação básica de 12 anos (nove anos mais três ou oito mais quatro). O Brasil era o único que tinha uma escolaridade obrigatória de 11 anos. São medidas que vão corrigindo as distorções do sistema. Já superamos a marca de 50% dos municípios com ensino de nove anos e o prazo para que todos se enquadrem vai até 2010. 
 
iG – E a escola integral ainda é muito pequena? 
 
FH
– Ainda é pequena, mas está evoluindo. Não havia estímulo para que fossem oferecidas matrículas em tempo integral. O prefeito que matriculava em tempo parcial recebia rigorosamente os mesmos recursos que o prefeito que matriculava em tempo integral. Isso mudou. Quem matricula mais em tempo integral recebe mais.  
 
iG – O senhor já enumerou uma série de programas em implantação ou já em andamento. Tem dinheiro para tudo isso? 
 
FH
– Estamos revertendo uma tendência histórica de queda do orçamento da educação. O orçamento em 2009 vai chegar a R$ 40 bilhões. Em 2004, era de R$ 20 bilhões. Com o apoio do presidente Lula, dobramos o orçamento do MEC em cinco anos. Temos de ter a clareza que o orçamento da educação deve crescer ano após ano e também de que nossa capacidade de gestão destes recursos tem que acompanhar a evolução do orçamento. Queremos resultados, não queremos só mais recursos. Numa palavra, queremos traduzir recursos em resultados. A melhoria dos indicadores de qualidade da educação é que dão segurança à área econômica, que coordena o Orçamento, de que o dinheiro destinado à educação é bem investido, vai repercutir, positivamente, no desenvolvimento do País. 
 
iG – Como o MEC pensa em eliminar a defasagem entre a faixa etária e a série cursada, que é um sintoma síntese dos maiores problemas da educação no Brasil?  
 
FH
– Isso está sendo resolvido. Vou dar um dado que, para mim, é muito eloqüente. Em 1999, portanto, não faz muito tempo quando se trata do processo de evolução da educação, apenas 50% dos brasileiros com 25 anos de idade tinham concluído o ensino fundamental. Em 2006, já são 70%. Os 30% que ainda faltam estão em geral no campo. Por isso, estamos fazendo um esforço enorme para levar ao campo todos os benefícios que as cidades já têm. Enfim, se o ritmo prosseguir, podemos já vislumbrar que, em prazo relativamente curto, todos os brasileiros com 25 anos terão concluído o ensino fundamental. É claro que deveriam concluir essa etapa com 15 anos, mas o avanço é visível.  
 
iG – E a faixa de 7 a 14, que tem também um atraso que gera depois evasão? 
 
FH
– O novo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que combina proficiência em matemática e português com taxa de aprovação, revelou um progresso bem razoável nesse aspecto. Fizemos um paralelo com Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa). Numa escala de zero a 10, o Brasil tinha, em 2005, média 3,8, enquanto a média dos países da OCDE, os países ricos, é de 6. Na medição de 2007, apenas dois anos depois, chegamos a uma nota média de 4,2. Se mantivermos o passo, podemos cumprir as metas e chegar à nota 6 em 2021. No ritmo atual, em 13 anos, o Brasil terá uma educação de qualidade comparável à dos 30 países mais ricos do mundo.  
 
iG – Esse ritmo não pode ser acelerado? 
 
FH
– Acho que é possível, mas, para isso, temos de aprofundar a trajetória. Para chegar a esse resultado, várias medidas foram tomadas, mas se eu fosse apontar em um único aspecto principal, diria que foi a avaliação por escola do Ideb. A avaliação por escola organiza a escola. O gestor da escola sabe exatamente o mínimo que o MEC espera dele. Isso organiza o currículo, a sala de aula, o plano de trabalho, tudo à luz da avaliação que será feita permanentemente. A escola pode, assim, estabelecer metas realistas e correr atrás das próprias metas. Os estudos internacionais demonstram que, quando se tem uma avaliação combinada com responsabilização, o sistema reage de forma sustentável. 
 
iG – Tem prêmio para a escola que cumpre suas metas?  
 
FH
– A variável de ajuste é a autonomia. A escola ganha autonomia ou perde, de acordo com o cumprimento das metas. Ou seja, o repasse de recursos se torna tão mais automático quanto mais ela demonstra merecê-lo. 
 
iG – O repasse é para escola? Vai direto do MEC, do governo federal, para a escola estadual ou municipal? 
 
FH
– Uma parte do repasse do Ministério da Educação vai para a escola, na conta corrente da escola, direto do MEC. Este é o programa “Dinheiro direto para escola”, que não passa pelos cofres municipais nem estaduais. Isso é muito importante porque a variável de controle não é mais ou menos recursos, e, sim, o grau de autonomia que a escola vai ter na gestão desses recursos.  
 
iG – Qual o volume de recursos destinado a esse programa?  
 
FH
– Do orçamento global de R$ 40 bilhões para 2009, o “Dinheiro direto na escola” tem quase R$ 1 bilhão. Quando chegamos, era menos de um terço disso. Quanto mais a escola cumprir metas, mais autonomia ela terá. Isso não significa, contudo, que a escola que não cumprir suas metas será punida com perda de recursos. Significa que o grau de liberdade dela diminui, que não receberá dinheiro suplementar e que terá de apresentar um plano de trabalho para justificar os recursos que recebe.  
 
iG – A avaliação por escola tem um óbvio efeito no curto prazo. Mas é sustentável no médio e no longo prazos? 
 
FH
– A minha resposta é não, se outras medidas não forem tomadas para garantir a consistência deste ciclo de melhorias. A gente morreria na praia do ensino médio.  
 
iG – Quais são essas medidas? 
 
FH
– Em primeiro lugar, em relação ao ensino médio, é investir forte na formação profissional, porque o aluno do ensino médio não está interessado na escola tradicional. Ele esta interessado na escola que amplia os seus horizontes e possibilidades intelectuais direcionadas ao trabalho. Por isso que três medidas, que já foram tomadas, são essenciais para melhoria do ensino médio.  
 
iG – Quais são? 
 
FH
– Primeiro, expansão da rede federal de educação profissional. Eram 140 escolas federais em 2003, vamos pular para 354. Quero destacar esse fato: em quase um século foram feitas 140 escolas técnicas federais. O governo Lula vai entregar 214 novas. Segundo, programa “Brasil Profissionalizado”, R$ 1 bilhão da União, em quatro anos, para reestruturar a rede estadual de ensino médio. Terceiro, reforma do Sistema S, com a ampliação gradual e progressiva das vagas gratuitas no ensino profissionalizante do Senai, Senac etc.  
 
iG – Dobrar ou triplicar o número de escolas não é fácil, mas não é o mais difícil. Mais difícil é mantê-las funcionando e bem. Tem dinheiro para isso? 
 
FH
– Essa mudança de R$ 20 bilhões para R$ 40 bilhões no orçamento da educação é para dar sustentação a isso.  
 
iG – Será suficiente? 
 
FH
– Meu sucessor vai receber um orçamento consistente para manter e sustentar esses avanços.  

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