Carta Capital dedica capa e oito páginas ao PNLD

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A história, como ela é
Carta Capital – Ana Paula Sousa

Mário Schmidt é uma espécie de Paulo Coelho dos livros didáticos. A proximidade com o mago, antes que se diga que o autor é, além de “comunista“, esotérico, dá-se no campo dos números. Schmidt, autor da coleção Nova História Crítica, vendeu cerca de 10 milhões de exemplares rio País e estima-seque tenha chegado às mãos de 28 milhões de alunos.

Schmidt ficou enfim famoso. Nas últimas semanas, protagonizou uma série de reportagens que o acusam de disseminar a ideologia comunista pelas escolas brasileiras. No jornal O Globo, a obra foi definida como “um livro didático bisonho, encharcado de ideologia’; que fez Ali Kamel sentir-se do mesmo jeito que, um dia, se sentiu a atriz Regina Duarte. “É de dar medo“, escreveu, no jornal, na terça-feira 18, o diretor de jornalismo da Rede Globo. Estava dada a largada para uma série de artigos e editoriais uníssonos.

Nova História Crítica é uma das 53 coleções excluídas na última avaliação do Ministério da Educação (MEC), que analisou 144 títulos submetidos ao Plano Nacional do Livro Didático (PNLD). Schmidt, publicado pela Nova Geração, uma das últimas editoras pesospenas num ringue de pesos pesados, tornou-se best seller no mais rentável segmento do mercado editorial brasileiro. Basta dizer que, num País que consome, em média, 2,5 livros por ano, o governo adquiriu, em 2007, 121 milhões de exemplares. Trata-se do maior programa de aquisição de livros do mundo. E o cliente é o Estado.

Não é preciso ter faro especialmente apurado para intuir que por trás do barulho capaz de jogar na fogueira a obra de Schmidt esconde-se uma disputa a um só tempo ideológica e econômica. No meio do caminho que um livro percorre antes de chegar aos alunos, há mais que uma pedra. Há disputas políticas, há uma compra de 560 milhões de reais em 2007 e há interesses financeiros atiçados pelo desempenho do grupo espanhol Santillana, cliente da consultoria do ex-ministro Paulo Renato Souza que ultrapassou o Grupo Abril no ranking do PNLD.

A professora de história Margarida de Oliveira, membro da comissão técnica para o PNLD, está longe de integrar o coro de defensores do livro de Schmidt, até porque foi sob a sua gestão que a obra saiu da lista de compras. Ainda assim, ela espantou-se com a saraivada de acusações contra a coleção.

“O que me chamou a atenção foi o fato de os jornalistas, geralmente tão atarefados, se ocuparem de um livro que não será mais comprado pelo governo“, diz a professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

“Além disso, não entendi o esforço para vincular o livro ao governo Lula, uma vez que, ao contrário do que tentou se mostrar, ele foi aprovado no governo FHC e descartado na atual administração.“

Tal detalhe parece ter escapado ao próprio ex-ministro Paulo Renato Souza, hoje deputado federal. “Quando estávamos no governo, evitávamos viés ideológico na escolha dos livros didáticos. Essas diferenças devem ser respeitadas, mas, infelizmente, estamos vendo que a prática se perdeu com o tempo“, declarou, no site do PSDB.

Nova História Crítica entrou na seleção do MEC em 2002, ano de Paulo Renato à frente da pasta. Desde 1995, a lista é elaborada por 31 pareceristas, recrutados em universidades e divididos por especialidade. O trâmite começa no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), da USP, apto a verificar gramatura do papel, tamanho da fonte e outras especificidades técnicas, e termina na elaboração de um guia. “Um livro aprovado não é sinônimo de livro perfeito, é apenas a garantia de que não tem erros ou estereótipos.“

“Apresentamos uma lista e o professor escolhe a obra que mais o agrada, até de acordo com sua ideologia“; observa Margarida. No programa deste ano, por exemplo, o professor tinha 19 livros de história à escolha. O campeão de solicitações foi o de Schmidt.

Duplamente indignado – com a eliminação do livro do programa e com a cobertura da imprensa -, Arnaldo Saraiva dono da Nova Geração, diz tratar-se do livro didático “mais vilipendiado c, ao mesmo menos lido pelos detratores“. “O senhor Ali Kamel tem o direito de não gostar de certos livros didáticos. Mas por que ele julga que sua capacidade de escolha deveria prevalecer sobre a de dezenas de milhares de professores?“; pergunta. Chama a atenção, nas reportagens sobre o livro, a omissão de trechos complementares às frases “tendenciosas“ citadas e a reprodução – dos mesmos trechos em todos os jornais.

Saraiva, que seguiu trilha própria depois de trabalhar na editora da família, atrela a ofensiva, sobretudo, à entrada do capital internacional no setor. “Existe hoje um ataque direto à única editora didática que não se vendeu ao capital externo, especialmente ao espanhol.“ A frase, que pode soar conspiratória, encontra eco entre estudiosos do setor.

Célia Cassiano, na tese de doutorado em Educação, recentemente defendida na Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo, debruça-se sobre o mercado editorial e procura entender de que modo o movimento empresarial, e a forte presença espanhola no setor, tem afetado o conhecimento que chega às escolas. Ela diz que, no mundo todo, empresas como Hachette, Hatier, Nathan, MacMillan, Longman, Anaya e Santillana investem em livros didáticos. No Brasil, até os anos 90, o mercado estava concentrado em grupos familiares. A partir daí, as editoras começam a ser abraçadas por grupos empresariais e desenha-se o “oligopólio“ esmiuçado por Célia.

De 1985 a 1991, houve a participação de 64 editoras do PNLD, a despeito de 84% do fornecimento de livros ter ficado nas mãos de apenas sete grupos (Ática, Brasil, FTD, Ibep, Nacional, Saraiva e Scipione). Em 1998, o número caiu para 25. Em 2006, apenas 12 editoras fizeram parte do programa. “Sempre houve concentração. A diferença, agora, é que .is editoras pequenas desapareceram“, pontua Célia.

Nos anos 2000, movimentos importantes aconteceram. Em 2001, a Santillana, braço editorial do maior grupo de mídia espanhol, o Prisa, que faturou 4 bilhões de euros em 2005, adquiriu a Moderna, criada pelo professor de química Ricardo Feltre. E, se a alguém causou estranheza que o El País tenha escrito, a propósito de Schmidt, que “el libro de texto ensalza el comunismo y Ia revolución cultural china“, cabe lembrar que o jornal pertence ao Grupo Prisa.

O capital estrangeiro chegou também por meio do grupo francês Vivendi, que se associou à Abril na compra da Scipione e da Ática, líder do segmento didático e infanto-juvenil por vários anos. Em 2004, o Vivendi se foi e o Grupo Abril assumiu o controle acionário total das editoras.

“É verdade que o mercado evolui de forma concentrada. Mas, para você ter uma idéia da complexidade, basta dizer que um livro que será comprado em 2009, está ficando pronto agora“, diz João Arinos, presidente da Abrelivros, a associação que reúne os editores de livros didáticos, e diretor do Grupo Abril. “É um investimento enorme que corre o risco de ser todo jogado fora, caso o livro não seja aprovado. E, se você olhar, no resto do mundo a concentração é ainda maior.“

Mônica Messenberg, diretora de relações institucionais do Grupo Santillana, diz que a própria característica das compras governamentais favorece os grandes grupos. “O governo paga, em geral, 20% do valor cobrado pelas livrarias. Temos uma margem de lucro pequena, que só compensa se você trabalhar em escala. Há, inclusive, muita editora pequena que procura as grandes para publicar seus livros.“

Mônica sabe do que fala. Antes de se tornar executiva do grupo espanhol, era presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), no ministério de Paulo Renato. O expressivo crescimento da editora no segmento deixa os concorrentes com a pulga atrás da orelha, até porque a ligação com o governo anterior não se restringe à presença de Mônica.

No site da Paulo Renato Souza Consultores, que promete “acesso direto a organismos, fundos e empresas internacionais com interesse em desenvolver parcerias e/ou investimentos no setor educacional brasileiro“ e “desenvolvimento de estratégia de entrada no mercado educacional brasileiro“, Santillana e Moderna figuram como clientes.

“O crescimento foi grande porque passamos a investir no mercado público. Antes, o PNLD não era encarado como significativo para a editora“, justifica Mônica. Sobre o possível conflito de interesses e as informações privilegiadas, rebate: “Eu estava havia seis meses fora do MEC quando aceitei o posto. Além disso, não se configura conflito de interesses porque eu não negocio preços com o governo. E como a Moderna nem era focada nesse mercado, não dá sequer para dizer que eu os tivesse beneficiado antes“.

O deputado Paulo Renato não atendeu à reportagem de CartaCapital. Disse apenas, por meio do assessor, não ver conflito de interesses. Não parece absurdo, no entanto, questionar sua legitimidade para, no Parlamento, arvorar-se em defensor das causas educacionais e apresentar projetos que versem sobre os critérios do PNLD, como apregoou por estes dias.

Quanto mais se puxam os fios desse novelo bilionário, mais interesses difusos aparecem. “Ao se falar de livro didático, nada pode ser desprezado.“

Temos sempre de lembrar que esse mercado depende, de maneira radical, das compras do governo e que a relação entre editoras e Estado é antiga“, anota o professor Kazumi Munakata, coordenador da disciplina História do Livro Didático, na PUC-SP. Formado em Filosofia, doutor em História da Educação e com passagens pela Abril Cultural e pelo Telecurso, da Globo, ele arrisca algumas hipóteses para a ofensiva contra o livro de história.

“Primeiro, temos de lembrar que vivemos uma onda de conservadorismo. Ao mesmo tempo, existe alguma coisa em jogo que pouca gente sabe o que é. Pode ser tanto uma tentativa de desestabilizar o governo quanto uma reorganização de forças no mercado ou uma tentativa de furar um esquema cheio de barreiras“, analisa Munakata.

Ao falar de barreiras, chega-se a dois pontos. Um deles, diz respeito à restrição aos divulgadores que atuavam nas escolas. Em 2006, o MEC criou regras que limitam a propaganda das editoras, para evitar que os professoras sejam influenciados indevidamente. As novas regras quebraram as pernas da Ática e da Scipione, pertencentes à Abril.

A outra barreira imposta pelo PNLD atinge uma ponta menos visível do mundo do material didático, que são os chamados sistemas de ensino. Nascidos nos cursinhos pré-vestibulares, os sistemas de grupos como COC e Positivo expandiram-se e, hoje, são publicados também por editoras como a Moderna e a Abril.

“Aliada à forte concentração dos grandes grupos chama a atenção que, gradativamente, a maior parte dessas empresas começou a comercializar sistemas de ensino, inclusive para a rede pública, nem sempre de forma transparente“, diz Célia Cassiano. A revista Veja, da Abril, curiosamente, fez uma matéria que dizia ser o sistema COC a sétima maravilha do mundo e, alguns meses depois, desancou o método. Correndo à margem do PNLD, os sistemas de ensino são vistos, por especialistas em educação, como uma opção arriscada.

“É um pouco a idéia do livro resumido, com objetivos práticos, que deixam a formação humana de lado“, opina Munakata. “Mas, nos próprios livros didáticos, nota-se uma tendência a enlatados, a livros que vêm de fora, padronizados. Me parece que se instala a crença de que o livro pode substituir o professor e também de que escola só serve para preparar para o vestibular.“

Célia Cassiano lembra que, em qualquer tempo, o livro didático fica no centro de uma disputa real e simbólica. “Em todos os países, o livro didático é visto como um instrumento de poder“, diz. No caso brasileiro, a relação direta entre Estado e editoras de livros didáticos remonta ao Estado Novo, de Getúlio Vargas, quando foi criado o primeiro programa de leitura.

Entre 1964 e 1984, houve a intervenção estatal que criou livros até hoje famosos pelas distorções.

O PNLD foi implantado em 1985, no governo Sarney, e começou a valer em 1986. Até então, a aquisição restringia-se a bibliotecas e alunos carentes. Para ter uma idéia, em 1971, o governo comprou 7,2 milhões de livros. Em 1986, com a implantação do programa, houve um salto, para 45 milhões, mas a média logo caiu para cerca de 12 milhões.

“Até 1996, o volume era menor e o professor é que indicava os títulos a serem comprados. A questão da distribuição também era problemática. Houve denúncias de irregularidades entre distribuidoras e, em lugares distantes, havia livros que chegavam em setembro, quando o ano letivo estava se encerrando“, relata Munakata.

O problema de distribuição foi minimizado com a entrada dos Correios no processo é a lista, até o petardo lançado por Ali Kamel, recebera muito mais elogios que críticas. “O que causa um grande desconforto ao Ministério da Educação são algumas vozes que, talvez sem perceber, estavam quase propondo a volta da censura“, diz o ministro Fernando Haddad. “Na minha opinião, há, subjacente a essas posturas autoritárias, uma desconfiança da capacidade do professor. Então se desconfia de todos: da família, que também não participa do ato educativo, do professor, dos avaliadores das universidades.“

Munakata, por sua vez, vê nos ataques ferozes ao livro de maior sucesso nas escolas brasileiras a reedição de uma história antiga. “Quando o Montoro foi eleito (governador de São Paulo, em 1982), houve reforma curricular. O currículo de história levou dez anos para ser aprovado porque os jornais diziam que a reforma tinha tendência comunista’, recorda. “Vira e mexe, a imprensa cria essa falsa polêmica. Curiosamente, depois dos escândalos dos livros da ditadura, que inventavam a história, houve uma reação dos autores e o tom dos livros passou a ser, basicamente, progressista. Até um autor como Joaquim Silva, super conservador, virou progressista, depois de morto, nas reedições da FTD.“ A imprensa parece seguir na mão contrária.

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