Gente lendo gera gente lendo

Há umas semanas, no saguão do Itaú Cultural, enquanto aguardávamos a apresentação do resultado da pesquisa Retratos da Leitura, o comentário geral era de que iríamos chorar juntos. Não deu outra: a cada slide o pessoal se entreolhava, ajeitando-se na cadeira, com aquela sensação de que, mesmo com todos os esforços, estamos enxugando gelo no sol quente.

Quem trabalha e milita na área não se surpreendeu com os gráficos. Tivemos muitos anos de quedas de investimentos, inexistência de projetos e programas sistemáticos e eficazes para o setor, um governo que se mostrou abertamente contra as manifestações artísticas e culturais, tropeços nas compras, retorno da censura a livros, uma pandemia que dizimou centenas de milhares de pessoas e deixou sequelas no sistema de educação, e por aí vai.

Sem falar que somos um país de muitas fomes disputando qual delas é a mais urgente. A de livros fica em segundo plano quando a de comida é quem grita nas casas e nas ruas. Mesmo porque ninguém sente falta de algo que nunca lhe foi devidamente apresentado na vida. Sim, falo de literatura.

Um dos dar(r)dos que mais me acertou bem no ponto fraco foi a queda acentuada de leitura nas escolas. Sou cria de biblioteca escolar, aqueles octógonos mágicos dos Cieps criados pelo saudoso Darcy Ribeiro. Lá eu fui de moleque pobre a moleque pobre com sonho: essa palavrinha faz toda a diferença na vida de uma criança. Lembro-me disso em todas as vezes nas quais visito escolas para conversar com a galerinha.

Tenho visto que muitos espaços de leitura, quando existem, estão fechados. Na educação e na vida, os problemas nunca vêm sozinhos: há uma evasão grande de professores, que se soma ao fato de vários estarem passando por problemas decorrentes da pandemia. Nesse cenário, as salas de leitura ficam fechadas, um convite para se tornarem depósitos de materiais diversos (outro dia falarei dos pacotes de livros do PNLD pegando poeira porque não há contexto para que sejam trabalhados). Pode parecer apocalíptico, mas como a coisa anda é capaz de, em não muitos anos, espaços de leitura desaparecerem, ou se tornarem raridade nas escolas.

Queria lembrar um lance meio óbvio: para as pessoas que não têm acesso a bens culturais em casa, a escola é o único espaço onde, diariamente, seria possível conhecer o poder da leitura. É gente lendo gerando gente lendo. Mas se até esses espaços desaparecerem, como a coisa fica?

O Censo Escolar de 2023 revelou que apenas 52,5% das escolas brasileiras têm biblioteca ou sala de leitura (para quem não sabe, esse termo é um eufemismo para “biblioteca sem bibliotecário”, uma vez que concursos para esses profissionais acontecem mais ou menos quando o cometa Halley passa por aqui). A lei de universalização das bibliotecas nas redes escolares, de 2018, tornando obrigatória a existência desses espaços, está parada desde 2023, parecendo não ser uma pauta urgente. Poxa, Centrão!

É importante esclarecer aqui: eu não sou um profissional do livro, e sim da literatura, das literaturas para ser mais exato. Não é a mesma coisa. Meus apontamentos são da perspectiva de quem lê, escreve, publica e circula em escolas e eventos literários, tendo um pé na bolha dos artistas e outro, que considero o mais forte, no mundão real. Sendo assim, devemos atentar que a pesquisa, de viés quantitativo, tem um parâmetro do que considera leitor: alguém que lê até um trecho de livro ao longo de três meses, podendo ser qualquer leitura. Mesmo que os autores mais citados sejam nacionais (Machado, Lobato e Maurício de Souza), me parece que se aplicássemos um filtro sobre quem está lendo literatura brasileira contemporânea o quadro seria bem pior.

Mas é preciso entender os motivos dos números. Se minha memória não falhou por completo ainda, creio que a coordenadora da pesquisa Zoara Failla, durante o evento em São Paulo, lançou uma pergunta das mais importantes sobre esse diagnóstico tenebroso: será que não estamos falando apenas para nós mesmos? Em muitas vezes, acho que sim. Desde escritores produzindo para o próprio grupo, passando por editoras reféns de editais até a jactância de sucessos pontuais como solução para o todo.
Peguemos, por exemplo, uma das ferramentas da área: os eventos literários, que consideramos importantes para o desenvolvimento de práticas leitoras e chamam a atenção pela mídia gerada, não são frequentados por 92% da população. Soltamos fogos com as bienais aformigadas de gente, mas é preciso saber que elas, sozinhas, não mudam o quadro geral.

Por isso encerro com a boa e velha esperança. Acabei de ler o livreto do MinC Política Nacional de Leitura e Escrita: ações e investimentos. Há ali um conjunto de iniciativas muito importantes para a área, com metas claras para os próximos 10 anos, contemplando praticamente todas as etapas do setor. Da instalação de bibliotecas nos conjuntos do Minha Casa Minha Vida, o recém-aberto Territórios da Escrita até a retomada do Agentes de Leitura, o que mais me anima.

Se tudo der certo, teremos política pública da melhor qualidade em ação, o que certamente vai contribuir para a melhoria do quadro. E torçamos para que não apareça a praga da descontinuidade: segundo nossa tradição, o que dá certo tende a ser mais rapidamente encerrado, como foram os Cieps.

 

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