As editoras entre três ditaduras econômicas

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A série histórica da pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, divulgada recentemente, revelou uma diminuição de 43% no faturamento real com vendas no mercado desde 2006. Este dado é central para entendermos as dificuldades econômicas do mercado editorial e para buscarmos consensos que nos tirem deste lugar (este artigo, ao fim e ao cabo, é sobre isso, mas também sobre a difícil, mas necessária, boa relação entre livreiros e editores).

Diante de um resultado tão negativo, não é de se estranhar que este mercado viva uma espécie de crise constante, com redes de livrarias engolindo pequenas livrarias e depois entrando elas próprias em recuperações judiciais intermináveis, que não recuperam, mas fazem uma parte do setor, sobretudo distribuidoras e editoras, absorver calotes imensos.

No último dia 15 de julho, Alexandre Martins Fontes e Rui Campos publicaram um artigo bastante crítico à prática de descontos em seus sites e em feiras por editoras. Eles estão corretos no resultado prático desses descontos – desvalorização simbólica e econômica da livraria –, mas, a meu ver, incorrem num erro comum quando analisamos a situação, que é idealizar comportamentos e não analisar aspectos centrais do problema. Ambos dizem ainda que, ao definir o preço de venda de um produto na livraria, o editor concretiza um “contrato” com o livreiro, que, em tese, o obrigaria a vender o produto pelo mesmo preço fora da livraria.

Penso que, para resolvermos essa questão, devemos entendê-la a partir de um outro prisma. Vou virar a lente para as editoras: qual é a situação de fundo vivida por elas?

As editoras brasileiras hoje vivem um problema imenso, o de buscar sobreviver em meio a dois grandes monopólios no mercado.

De um lado, temos o monopólio do principal insumo do livro – o papel –, cujo preço é cotado em dólar e definido por uma ou duas empresas do setor no país. Do outro lado, temos o progressivo monopólio nas vendas ao varejo, encabeçado pela principal concorrente e principal problema das livrarias, a Amazon.

Em meio a essa situação, está o, digamos, produtor de livros, ou seja, as editoras.

Houve uma época em que grandes editoras eram capazes de definir as regras do mercado. Basta lembrar o papel que a consignação e os descontos para redes de livraria tiveram no crescimento da Companhia das Letras. Essa forma de negociar obrigou que todos os outros editores cedessem nestas duas questões em suas negociações com as livrarias, e não apenas com as grandes redes.

A situação hoje é outra: embora possa ter havido concentração econômica em alguns grandes grupos e uma dispersão editorial (que favoreceu a bibliodiversidade brasileira) com a abertura de centenas de novas editoras, nenhuma delas hoje é capaz de ditar as regras da cadeia econômica do livro.

Também nenhuma editora (ou mesmo jornal, revista, etc.) é hoje capaz de negociar papel em quantidade suficiente para que o monopólio neste setor se dobre significativamente diante de pressões de troca de fornecedor – até porque eles não existem.

Finalmente, os governos, em diferentes níveis (federal, estaduais e municipais), adotaram regras de compra diretas das editoras que elas não tem a menor condição de contestar em essência, cabendo às vezes discussões sobre alguns detalhes. Seria um terceiro “monopólio”, aqui entre aspas, porque deriva de uma situação que só pode existir com essa condição: não é possível pensar em diferentes níveis ou setores do Estado disputando quem vai comprar o livro A ou B.

Em cenários de equilíbrio econômico, toda editora prefere vender em livrarias do que nos próprios canais de venda. A administração de um canal próprio exige uma relação com o leitor (consumidor) que não é da essência do negócio de edição. Nenhum editor que conheço gosta de fazer feiras, no sentido de acreditar que é dali que deve vir seu sustento. Todo editor que conheço celebra quando consegue pôr seus livros em novas livrarias, mesmo sem a certeza de que o pagamento virá.

Por outro lado, editar livros é uma tarefa de risco. Risco da censura, risco da violência dos poderosos – muitas vezes atacados (justa ou injustamente) em obras que são também panfletos políticos –, risco econômico de editar e não vender.

A quem quiser saber mais sobre isso, sugiro a leitura de Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária (Companhia das Letras, 1998), entre tantos outros estudos sobre a vida do editor. O editor é uma figura do Iluminismo e, como tal, historicamente, não se dobra completamente a situações que atrapalham a circulação do que publicam, resistindo por meio de caminhos nem sempre bem pavimentados.

Foi assim no passado, é assim no presente. Faz parte de uma cultura de sobrevivência de projetos editoriais a busca de alternativas nem sempre as mais bonitas ou toleradas pelas leis de mercado e do poder. A “subversão” diante do aperto não é exceção, é uma cultura editorial, e é bom que seja assim, para a vida democrática.

O que isso quer dizer, nos dias de hoje?

Entendemos que, hoje, os editores vivem entre essas três “ditaduras econômicas” acima descritas: a do papel, a da circulação e a das compras governamentais. E sobreviver a essa situação exige, antes de tudo, buscar alternativas.

As vendas diretas, com grandes descontos, em sites e feiras, são uma saída encontrada por parte dos editores para driblar esse triplo constrangimento econômico. Se editores viraram livreiros de si próprios, devemos entender que o que está ocorrendo é uma tentativa de sobrevivência porque os outros elos da cadeia econômica do livro, onde está o verdadeiro poder no momento, não são capazes de construir, por si sós, uma situação de equilíbrio e de manutenção desses negócios.

Não há, entre as editoras, nenhuma que consiga ditar regras de conduta comercial para as outras, o que é um aspecto positivo no sentido de favorecer a diferença e a diversidade editoriais. Por outro lado, Amazon, Suzano e governos não negociam, de verdade, com nenhuma editora. Essa é a parte mais delicada da economia do livro hoje.

Diz a tradição da economia política que acordos de cavaleiros não funcionam em situações em que não há monopólios. Só monopólios ou cartéis muito bem organizados, como o do setor do petróleo, conseguem impor regras de conduta entre si, sem interferência estatal.

Para usar uma palavra do direito econômico, as editoras estão, na cadeia do livro, descartelizadas, cada uma buscando uma alternativa que permita sua sobrevivência. Aquelas, como a Alameda, que dirijo com Joana Monteleone, bastante voltadas para o mercado podem não dar descontos no seus espaços de venda, mas são apenas uma parte delas. Outras não têm alternativa a não ser priorizar a qualquer custo suas vendas diretas e complementar com as vendas em livrarias, porque se não for assim, elas simplesmente deixariam de existir.

Creio, assim, que críticas pertinentes, mas um tanto idealistas quando pensamos no conjunto do mercado, não farão os editores deixarem práticas problemáticas, especialmente diante do elo mais fraco da circulação de livros – ou seja, as livrarias independentes, que a ANL representa muito bem.

A saída, para isso, é complexa, mas me parece a única: lutar na sociedade por uma progressiva regulamentação do setor econômico que o livro representa. Isso passaria, por exemplo, em colocar em pauta no debate público a necessidade de leis que favoreçam a circulação dos livros, pensando não apenas na sobrevivência das editoras e livrarias físicas, mas também na ampliação do espaço social do livro e a da leitura.

Vou colocar aqui cinco pontos que considero importantes nesta discussão, que precisam ganhar os leitores (e eleitores). Claro que existem outros, mas esses são os que, no meu lugar de fala de editor, entendo como mais urgentes para termos um mercado mais funcional:

Aprovação da Lei do Preço Comum (Lei Cortez), debatida pela Liga Brasileira de Editoras desde sua fundação, depois abraçada por ANL e, mas recentemente, outras entidades do livro.
Aprovação de leis, como a isenção do IPTU para livrarias de rua, que sinalizem uma priorização da expansão da rede de livrarias físicas. Também seriam bem vindos editais de apoio à transformação das livrarias em pontos de cultura.
Simplificação das exigências de adequação tributária para o acesso ao papel imune, cuja burocracia e rigor não são compensadores para pequenas tiragens das editoras independentes. O que seria uma vantagem para as editoras acaba, na prática, significando vantagem para as editoras mais estruturadas.
Regulação do setor do papel e celulose, com controle de cotas de exportação, para redução dos impactos de alta do dólar e de oscilações de demanda dessas commodities no mercado internacional.
Liberação de verba de compras de livros diretamente para bibliotecas públicas e comunitárias, de pequeno valor, desde que esses valores sejam gastos em livrarias físicas, com venda a preço de capa, nas proximidades das bibliotecas.
Um engajamento de editores e livreiros em medidas como essas (há outras possíveis, muitas elencadas no anexo do Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas do município de São Paulo – lei 16.333, que completa dez anos em 2025) poderia transformar o mercado editorial e, finalmente, inverter a curva de faturamento e de leitura de livros no Brasil.

Porque queremos um país de livros e leitores, precisamos que livreiros e editores entendam os problemas da cadeia e busquem soluções conjuntas, integradas, que os aproximem.

Espero que essas discussões sejam retomadas nos próximos meses, e aqui fica um convite: entre os dias 29 de agosto e 1º de setembro, a Libre promove a Primavera dos Livros em São Paulo, em conjunto com a Feira Periférica do Livro.

É uma feira em que o desconto não é obrigatório (e em geral as participantes respeitam as regras da Lei do Preço Comum, ainda não aprovada, mas já adotada por muitas editoras) e onde o debate das políticas públicas vem sendo travado há quase duas décadas.

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