Ela veste uma camiseta regata preta onde se lê a frase: “Vejo que ainda não vi bem o que vi“, de Guimarães Rosa. É jovem, tem olhos verdes reluzentes, cabelos loiros compridos de sereia, e parece não dar muita importância para entrevistas. Ela também desconhece aquele ditado judaico que diz que quem salva uma vida salva o mundo inteiro. Sua atenção está voltada para as pessoas que realmente importam, os moradores desta comunidade esquecida. Quando se apresenta ao grupo de visitantes, ela diz apenas: “Eu sou uma vaga-lume“.
Embora tenha só 32 anos, Laís Fleury já viu muitas coisas que a maioria dos brasileiros não viu e nem está muito interessada em ver. E ela as viu muito bem. Por lugares ermos da Amazônia aonde só se chega de barco, pau-de-arara ou com apoio da Força Aérea Brasileira, ela se alegrou com os olhares curiosos de crianças e adultos que pela primeira vez na vida viam um livro de histórias. A missão de Laís agora é abrir os olhos dos outros para que mais pessoas como ela possam ver. E quem sabe fazer alguma diferença. Uma vaga-lume, você sabe, tem esse destino na vida: levar uma luzinha fraca e encantadora onde tudo o mais em volta é treva e esquecimento.
A luz que Laís e suas sócias vaga-lumes estão espalhando pelos cantos escuros do Brasil se chama literatura. Como missionárias da selva, essas jovens bem formadas e bem nascidas de Goiás e de São Paulo – o trio inseparável Laís Fleury-Sylvia Guimarães-Maria Tereza Meinberg- estão levando para uma nova etapa um trabalho imbuído de paixão, perseverança e obstinação. Ele foi plantado há cinco anos e já colhe muitos frutos. A operação é conhecida como Expedição Vaga-Lume, uma organização civil sem fins lucrativos que já instalou bibliotecas em 101 escolas de 20 municípios da Amazônia Legal. Uma região onde um em cada três adultos é analfabeto ou analfabeto funcional.
Os primeiros resultados concretos desse verdadeiro trabalho de formiguinhas puderam ser vistos no fim do mês de julho, no pequeno vilarejo marajoara chamado Tucumanduba. Foi ali, numa manhã abafada de domingo, que, diante de vários membros da comunidade e de um grupo de visitantes de fora que veio conhecer o projeto Vaga-Lume, que o vigia Júlio de Souza Teixeira foi oficialmente proclamado escritor.
“Seu Júlio“, como é conhecido, recebeu das mãos de uma criança da vizinhança o livro que conta a história de sua vida. É uma encadernação artesanal, uma brochura com capa de plástico, mas não vale tanto a forma e sim o conteúdo. Este livro é a materialização do espírito das vaga-lumes, uma vocação para inocular nas pessoas que nunca viram um livro na vida o “bichinho da leitura“. O livro do ’seu’ Júlio leva o título “A História de Um Vencedor“. E faz parte da proposta de espalhar por todas as bibliotecas vaga-lumes obras compostas por pessoas das próprias comunidades alcançadas pelo trabalho. É uma forma de arrematar o que começou lá atrás, há cinco anos, com as leituras de histórias feitas pelas vaga-lumes e por professores treinados por elas.
“Em 1939, na comunidade do Muturi, cidade de Soure, na Ilha de Marajó, Pará, nasceu Júlio de Souza Teixeira, o terceiro filho de uma família de nove irmãos“. O livro vai descrevendo uma vida de perdas e alcoolismo, o casamento rejeitado pela família da noiva, os 17 filhos (oito mortos, nove vivos). O vencedor do título se reconhece só no final, quando ’seu’ Júlio conta como conseguiu livrar-se do álcool com a ajuda dos Alcoólicos Anônimos, reconquistou a confiança da mulher e passou num concurso público da prefeitura para vigia da Escola de Santana de Tucumanduba. Quando lhe perguntam se ele sabe o que será feito com as outras cópias de “A História de Um Vencedor“, ’seu’ Júlio se agarra ao seu exemplar e diz: “Eu não sei o que vão fazer com aqueles, só sei que este aqui é meu“. Vários dos visitantes exibem lágrimas nos olhos.
Plantar bibliotecas simples e móveis – na verdade, pequenos caixotes de madeira reciclada que podem ser transportados de escola em escola pela imensidão sem fim da Amazônia – é um trabalho que só consegue se solidificar por causa dos treinamentos com os professores ou voluntários locais, que a Vaga-Lume chama de “mediadores de leitura“. O substantivo é o único elemento complicado da expedição. O resto todo é simples e talvez por isso mesmo eficiente.
Treinar um mediador é ensinar-lhe a ler bem as histórias, com entonação e alma, mas os cursos de 40 horas não ficam só nisso. Eles levam noções de gestão e organização social, da formação de um cadastro de leitores até a reunião em assembléias. “Recuperam a auto-estima e a capacidade da comunidade de conhecer o seu valor. O que eu vi aqui é uma verdadeira lição de empreendedorismo“, avalia Vivianne Naigeborin, diretora de parcerias estratégicas e integração na América Latina da Ashoka Empreendedores Sociais, que estava entre os visitantes da expedição no fim do mês.
O impacto desse trabalho, portanto, vai muito além das crianças. Talvez o maior efeito seja mesmo sobre a vida dos professores. Enquanto os pequenos ganham intimidade com os livros, que são bonitos, coloridos e bem ilustrados, os adultos ampliam seu interesse pela leitura. “A leitura antes era sempre para resolver alguma questão gramatical ou para interpretação. Agora a idéia de ler por obrigação foi se acabando“, diz Luis Alberto da Silva Valle, professor da escola de Tucumanduba.
“Eu detestava ler. Quando essas moças chegaram, eu até tremia de medo de ficarem me fazendo perguntas“, conta a ex-professora Lucineide Borges, da Escola Municipal Santa Luiza, de Vila Pesqueiro, uma comunidade de pescadores a quinze minutos do centro de Soure, a capital não-oficial da Ilha do Marajó. Hoje, ela já consegue enumerar os benefícios do convívio com os livros infantis. Depois de ler para seus alunos um livro que conta como nascem os bebês, teve como responder à pergunta do filho de dez anos que quis saber de onde ele tinha vindo. “Se não tivesse lido aquele livro, eu tinha morrido de vergonha“.
Em cinco anos de trabalho, a Vaga-Lume já capacitou 800 mediadores de leitura e atingiu com seu trabalho um total de 6.200 famílias em nove Estados. A meta para 2007 é quase dobrar o orçamento, para R$ 1,8 milhão, e para isso as três sócias têm batido de porta em porta. O BNDES tirou um belo peso das costas das moças ao liberar de seu fundo social R$ 700 mil num contrato fechado no ano passado. O apoio de empresas como Guascor e Banco Daycoval, Gol e Banco da Amazônia também tem sido fundamental. “Sem a Lei Rouanet nós não seríamos nada“, afirma Laís. Mas bem que elas gostariam de conseguir fechar patrocínios de mais longo prazo e evitar o trabalho de negociar as cotas todos os anos.
Outro objetivo para 2007 é implantar um banco de dados e um sistema de monitoramento, que dê mais agilidade e eficiência para processar as informações colhidas nas comunidades. Ampliar a equipe de educadores é outra necessidade. Medir os resultados na melhora do aproveitamento escolar das crianças beneficiadas pelas bibliotecas também é importante, já que não há dados concretos que mostrem como o contato com os livros está mudando a realidade dessas famílias. “Dados nós realmente não temos, mas sabemos que o aproveitamento escolar melhora muito“, afirma Luci Olga Abdo Nascimento, secretária de educação de Soure.
Estatísticas seriam boas para impulsionar o trabalho dessas obstinadas, que de tanto se dedicar a esses vilarejos e escolas acabaram se tornando um com eles. Mas enquanto não há números, ficam as palavras. Palavras que, como disse o escritor amazonense Milton Hatoum “não curam, mas são uma trégua no desamparo, melodia na solidão.“