Mitos e verdades do mercado editorial

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on email

A frase geralmente vem com veneno, definitiva, pronta para ferir os brios: os argentinos teriam, em sua capital, mais livrarias que todo o gigante em berço esplêndido. Resta lamentar o destino e invejar em silêncio a grama literária do vizinho. Contra um argumento desses não há o que dizer — exceto que está errado. Calcula-se (talvez seja mais exato escrever “estima-se”, já que as estatísticas são precárias) que o Brasil tenha 1.800 livrarias. Buenos Aires, 400.  
 
O problema, contudo, é que se o mito está derrubado, pelo menos como enunciado, esses números absolutos estão longe de fazer jus à questão: ainda é muito mais fácil um argentino tropeçar numa livraria que um brasileiro. Na reportagem sobre os mitos e verdades do mercado editorial, especialistas falam dos entraves da área e de possíveis soluções (algumas polêmicas) para o problema. Que, aliás, não é privilégio nacional: em Londres também se discute a sobrevivência das livrarias independentes. 
 
 
 
Buenos Aires tem mais livrarias que o Brasil 
O Globo – Douglas McMillan 
 
O número que realmente dá conta do problema da comercialização de livros no país é o que mede quantas pessoas uma livraria serve em média. E aí, perdemos feio da terra de Borges: há uma livraria para cada 50 mil argentinos, enquanto no Brasil a vastidão de 84.500 pessoas se espreme na matemática das estatísticas em um único estabelecimento onde se vende livro.  
 
O brasileiro gosta de ler, ao contrário do que muitos pensam. Quando estimulada do jeito certo — primeiro, claro, aprendendo a ler bem, o que ainda é raro — muita gente está disposta a buscar a companhia de um livro. Mas o que os números sobre a distribuição insinuam, contudo, é que essa demanda por leitura ainda não é sólida o bastante para plantar por todo o país livrarias capazes de se sustentar.  
 
Uma das razões disso, apontam ao GLOBO diversas pessoas ligadas à distribuição, é que o mercado livreiro está privado de um segmento de grande importância econômica, responsável pela criação de novos leitores: os livros didáticos. Enquanto as livrarias ficam sem parte importante de seu faturamento, o público perde um grande incentivo para se habituar a um ambiente onde se respira livro. Não é impossível, é antes bem provável, que uma pessoa que tenha começado a ser alfabetizada na década de 90 não precise entrar numa livraria até o fim da vida.  
 
Nosso personagem hipotético faria o ensino fundamental numa escola pública. Todas recebem diretamente do governo os livros de cada ano letivo, incluindo-se aí não-didáticos, como por exemplo clássicos da literatura e infanto-juvenis. No ensino médio, se transferiria para um colégio particular. Hoje em dia, é cada vez mais comum comprar os livros necessários na própria escola. É uma opção muito mais econômica, já que as editoras negociam diretamente com as instituições de ensino preços mais baratos para grandes remessas. Depois, preparando-se para o vestibular, o aluno-modelo ingressaria num cursinho que já oferece apostilas de português, física, literatura ou qualquer outra matéria com o preço das mensalidades. Vem a faculdade, e depois a pós-graduação, onde nosso amigo se alimenta de capítulos fotocopiados de livros e apostilas customizadas . Ao concluir os estudos, esse aluno terá passando um terço de sua vida sem precisar entrar numa livraria.  
 
— O didático é fundamental para a abertura de novas livrarias. Foi como eu comecei, anos atrás: indo a escolas em começo de ano letivo e oferecendo descontos para os pais — afirma Marcos Gasparian, um dos donos da livraria Argumento, no Leblon, e presidente da seção estadual da Associação Nacional de Livrarias (ANL). — É importante por duas razões: primeiro, nos dá um fluxo de capital no início de ano, o que é fundamental, e segundo, faz com que as pessoas comecem a se cercar desde cedo de livros. Livrarias não são só intermediários que se pode cortar, são também lugares de cultura. 
 
 
 
As livrarias como centros culturais 
Felipe Lindoso 
 
Não. Buenos Aires não tem mais livrarias que o Brasil inteiro. Afirmar o contrário, hoje, é apenas uma boutade que não vale há uns cinqüenta anos. Mas pode ter sido verdadeira na primeira metade do século XX, quando a indústria editorial argentina viveu seu período áureo, graças a um esforço pela educação que já durava décadas. A reforma universitária de 1919 já transformava radicalmente o ensino superior ali quando nós não tínhamos sequer uma universidade.  
 
Essa superioridade, no entanto, é passado. Segundo informações do Cerlalc (Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe), a Argentina tem cerca de 800 livrarias instaladas, das quais 400 estão em Buenos Aires.  
 
E no Brasil?  
 
Os dados são precários. Só agora, por iniciativa do próprio Cerlalc, as entidades do livro brasileiras estão fazendo um cadastro das livrarias, cujo resultado ainda não foi publicado de forma consolidada.  
 
Entretanto, a partir dos dados de distribuidoras, o número de “pontos de venda” no país ultrapassa os 2.200. Dentro do conceito de livraria — espaço comercial que dedica ao livro uma atenção prioritária, ou pelo menos muito significativa — temos pelo menos umas 1.800. A metade disso no estado de São Paulo, cuja capital tem aproximadamente 200 livrarias. Rio de Janeiro está na faixa das 150 livrarias e o sudeste, em geral, está mais bem servido. O Acre e o Amapá são os que menos livrarias têm (3 cada um). É possível que esses números estejam subestimados, até porque alguns segmentos do mercado editorial (como o religioso e o escolar) usam pontos de vendas mais especializados.  
 
É o suficiente para satisfazer o ego nacional?  
 
Em termos absolutos, sim. Mas a grande questão não é essa. A pergunta real é: temos livrarias em número suficiente?  
 
Temos aproximadamente uma livraria para 84.500 habitantes (os argentinos têm uma para 50 mil. Os EUA, uma livraria para cerca de 15 mil habitantes). Cidades com quase cem mil habitantes não têm nenhuma livraria — e tampouco bibliotecas decentes.  
 
As causas dessa tragédia são várias, e só listá-las superaria o espaço disponível. Mas algumas são cruciais.  
 
O governo federal tira das livrarias a venda de cerca de 25% de toda a produção de livros, pois os adquire diretamente das editoras. Essa prática, tomada em nome da racionalidade de custos, esquece o papel social da livraria e arranca do segmento um oxigênio indispensável para sua sobrevivência e saúde econômica. A prática governamental é agravada pela venda direta dos livros às escolas, feita pelas editoras. Tudo feito em nome da liberdade comercial e da racionalidade. Some-se ainda a compra direta nas editoras dos livros para as bibliotecas.  
 
A concentração do mercado é outro fator preocupante. As grandes cadeias conseguem das editoras vantagens muito superiores às das livrarias independentes. Embora eu estime que cerca de 97% dos títulos sejam vendidos sem desconto, os 3% restantes são precisamente o que proporcionam o maior retorno para os livreiros e editores: são os best-sellers. Com mais vantagens, as cadeias conseguem dar descontos ao consumidor final, gerando tráfego nessas lojas e diminuindo o retorno das livrarias menores. E, ao contrário do que possa parecer, esses descontos produzem preços médios maiores para o conjunto dos livros ofertados, além de reduzir os estoques e a variedade de títulos em cada livraria. As editoras têm que buscar um retorno médio, um certo equilíbrio entre os best-sellers e os de venda mais lenta. Isso deveria ocorrer também nas livrarias, mas nas cadeias impera o best-seller de giro rápido.  
 
As livrarias sempre foram financiadas pelas editoras. O modelo de negócio do mercado editorial brasileiro funciona com base no prazo e nos descontos dados pelos editores aos livreiros. Estes, por sua vez, não contam com outras fontes de financiamento. Mesmo o programa de financiamentos instituído pelo BNDES ano passado, para o mercado editorial, só beneficia as livrarias com o “cartão BNDES”, crédito rotativo limitado a R$ 50 mil.  
 
É fundamental, portanto, recolocar as livrarias no circuito das compras governamentais para escolas e bibliotecas, estabelecer incentivos fiscais e creditícios para as pequenas e médias livrarias para que essas possam, de fato, se transformarem nos centros culturais que poderiam ser.  
 
FELIPE LINDOSO é antropólogo, pesquisador de políticas públicas de cultura e autor de “O Brasil pode ser um país de leitores?” 
 

Menu de acessibilidade