Mais cedo na escola

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A partir de 2006, todas as crianças de seis anos terão de ser matriculadas na 1ª série do ensino fundamental (EF) das redes pública e privada. A lei de número 11.114 – que visa a garantir o acesso a mais um ano de escolaridade, principalmente a crianças de camadas populares – integra política do Ministério da Educação (MEC) para ampliar o ensino obrigatório no Brasil de oito para nove anos. Mesmo considerando os problemas de qualidade, a medida significa um avanço. Não há quem discorde do direito que a criança tem de estar na escola o máximo de tempo possível. No entanto, a ampliação envolve investimentos, reformas curriculares, mudanças na concepção da educação infantil e adaptação da estrutura das escolas para receber novos alunos. Nem toda a rede pública está preparada para isso e alguns dirigentes se negam a cumprir a lei, por falta de perspectiva de financiamento ou discordância de proposta pedagógica.  
 
Segundo Jeanete Beauchamp, coordenadora de políticas da educação infantil e fundamental do MEC, a proposta é discutida com as secretarias estaduais e municipais desde o final de 2003. Espera-se que, com a nova política, os índices de repetência e evasão escolar caiam. “Hoje, um aluno demora em média 10,2 anos para concluir o ensino fundamental de oito anos. Quanto mais cedo a criança for para a escola, mais ela vai gostar dela“, pondera Jeanete. Os sistemas têm autonomia para decidir como tratar os aspectos pedagógicos e muitos deles já estão adiantados na ampliação. Jeanete afirma que as matrículas de crianças no ensino fundamental de nove anos ultrapassam 7,3 milhões em 22 Estados e no Distrito Federal. Em Minas Gerais, o avanço é mais evidente e atinge quase toda a rede pública.  
 
A ampliação começou em Belo Horizonte, em 1994, com o projeto Escola Plural, proposta política e pedagógica considerada inovadora, na qual o eixo central era a reorganização do trabalho, do tempo, do espaço e do currículo, a partir do desenvolvimento humano do educando. Um de seus principais idealizadores, o educador espanhol Miguel Arroyo, que foi secretário-adjunto de Educação de Belo Horizonte de 1993 a 1997, conta que para incluir a criança de seis anos no EF uma equipe de pedagogos estudou o tempo de vida da infância (dividido em três períodos: até três anos, de quatro a seis, e de sete a dez). Chegou-se à conclusão que as habilidades psicomotoras de uma criança de seis anos estão mais próximas das de uma criança de sete anos do que das de uma de cinco ou quatro anos.  
 
A partir daí, desenvolveu-se uma organização baseada no tempo de vida da criança e foram propostos três ciclos de três anos. O primeiro, considerado infância (de seis a oito anos); o segundo, pré-adolescência (de nove a 11 anos); e o terceiro, adolescência (de 12 a 14 anos). “Só tem sentindo incorporar uma criança no ensino fundamental se você estiver preocupado com a totalidade de seu desenvolvimento. Não é para diminuir a repetência e aumentar a escolarização pura e simplesmente. É por respeito ao tempo da infância. Está faltando a pedagogia dar importância aos tempos de vida e não se preocupar apenas com o conteúdo“, opina Arroyo, que hoje assessora não só a Prefeitura de Belo Horizonte, mas também outras cidades que planejam a ampliação para nove anos, como Guarulhos (SP), Contagem (MG), Fortaleza e Maracanaú (ambas no Ceará).  
 
Em 1999, toda a rede municipal de Belo Horizonte já estava ampliada e servia de modelo de experiência para outras cidades do país. Em 2004, a rede estadual passou a matricular alunos de seis anos. Toda a rede deve ser incluída em 2006. Maria do Pilar Lacerda, secretária municipal de educação da capital mineira e presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), relata que houve um “longo trabalho“ até atingir toda a rede. Não conseguiria fazer esse projeto, diz ela, caso não tivesse tido tempo para “estudar, discutir e pensar junto com o professor“. “Passamos a trabalhar com a média de 1,5 professor por turma. Portanto, se uma escola tinha dez turmas, ela teria quinze docentes. Isso fez uma diferença tremenda, porque o professor tinha um tempo fora da sala de aula para estudar, levantar dúvidas e propostas“, conta Maria do Pilar.  
 
Já nos Estados que ainda não matriculam crianças de seis anos no ensino fundamental, a medida não é vista de maneira tão simples e a resistência a ela, muitas vezes, é frontal. “Não existem as menores condições para que o Rio Grande do Sul cumpra essa lei. Não há salas de aula, professores, infra-estrutura e nenhuma contrapartida do governo federal. Nossos gastos com a educação já estão no limite da Lei de Responsabilidade Fiscal. De onde vamos tirar dinheiro para abrir mais 200 mil vagas?“, protesta José Fortunati, secretário de Educação do Rio Grande do Sul.  
 
Para Fortunati, tornar obrigatória a matrícula de crianças de seis anos no EF em 2006 é uma medida autoritária e descabida. “É impossível para o país. A conta não fecha. Parece que em Brasília cria-se sempre a ilha dos sonhos. As pessoas perdem a noção do que existe nos Estados e municípios. Além disso, a medida é um equívoco pedagógico. Essas crianças deveriam estar na educação infantil“, dispara.  
 
Apesar de o Rio Grande do Sul se posicionar contrário à entrada de crianças de seis anos e declarar que não cumprirá a lei, a rede municipal da capital, Porto Alegre, já adota a política desde 1996, em um sistema de ciclos. “A diferença está no tamanho da rede“, reconhece Marilú Fontoura de Medeiros, secretária municipal de Educação. “Porto Alegre tem 92 escolas municipais, que tiveram quase dez anos para se preparar. O Estado tem mais de 250 escolas só na capital. Se nossa rede não estivesse consolidada, diria que é praticamente impossível viabilizar a entrada de crianças aos seis anos em 2006.“ 
 
Situação parecida 
 
em que a rede municipal comporta a entrada de alunos aos seis anos no EF e a rede estadual, não – pode ser observada em São Paulo. A Prefeitura de Santo André, na região metropolitana, preparou a rede para trabalhar com os ciclos e, assim, antecipou a entrada de crianças aos seis anos. Esse ano, sistematizou-se a entrada de crianças ao seis anos no EF.  
 
“Na verdade, não abrimos vagas, apenas passamos as salas de pré-escola para educação fundamental. Temos a facilidade de, nas escolas municipais, a educação infantil e as quatro primeiras séries do EF funcionarem no mesmo prédio“, explica Cleusa Repulho, diretora de finanças da Undime e secretária municipal de Educação de Santo André, cidade em que o governo do Estado ainda é responsável por 40% das escolas de EF. A rede estadual de São Paulo tem 5.156 unidades de EF e cerca de 3 milhões de alunos.  
 
Segundo Gabriel Chalita, secretário estadual de Educação, nenhuma dessas escolas matriculará crianças aos seis anos no EF, que deverá continuar com oito anos de duração. “Essa é uma medida midiática, não consistente, sem sentido pedagógico e matemático. Se você amplia o período obrigatório que o aluno passa na escola de quatro para cinco horas, terá, ao final dos oito anos de EF, um aumento muito maior do que um ano“, defende. Chalita acredita que essa política de financiamento deve perder força com o Fundo de Manutenção de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). 
 
“Como há uma divisão de recursos entre estados e municípios, de acordo com o número de alunos matriculados no EF, é interessante para o município ter um tempo menor da educação infantil porque ele não recebe verba do Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) para isso. Com a aprovação do Fundeb, acho que o número de adesões dos municípios irá cair porque, sob o ponto de vista pedagógico, essa ampliação não significa nada. Ou, se significa, falta clareza por parte do MEC“. 
 
Política de inclusão 
 
A discussão mais profunda, na opinião de Maria Beatriz Luce, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS) e membro do Conselho Nacional de Educação (CNE), é a de inserir crianças que não teriam acesso à escola antes de chegar ao ensino fundamental. “É um sonho ampliar o número de horas que os alunos passam na escola, mas essa ainda não é uma realidade brasileira, já que a maioria das escolas tem alunos em três turnos diferentes de aula“, observa. Antes da lei n.º 11.114, a criança só poderia ser matriculada no ensino fundamental a partir dos sete anos. Assim, se uma criança não encontrasse vagas na educação infantil pública, ficava fora da escola até ter idade para entrar no ensino obrigatório. Segundo dados da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar (PNAD) da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2003, apenas 37,7% das crianças com idade até seis anos freqüentam uma instituição de educação infantil ou fundamental. Quando se isola a faixa de quatro a seis anos, a taxa é de 68,4%; entre a população de zero a três anos, o percentual é de apenas 11,7%.  
 
“As crianças de classes menos favorecidas têm o direito de estar na escola. É uma oportunidade de elas terem contato mais cedo com o mundo da escrita, da leitura, das brincadeiras e da sociabilização“, defende Maria Beatriz. Passará a ser responsabilidade dos pais matricular os filhos no ensino fundamental a partir dos seis anos. Para isso, de acordo com Maria Beatriz, as redes municipais e estaduais vão precisar trabalhar em regime de cooperação para atender a demanda de matrículas. “Não é toda escola pública que precisa ter vagas para essas crianças, mas a rede como um todo terá que oferecer vagas suficientes“, esclarece.  
 
Garantir o direito da infância é unanimidade entre especialistas e profissionais de educação que discutem o tema, mas alguns riscos são levantados. “Se é para manter a escola tradicional, conteudista, eu não ampliaria em mais um ano. Não adianta colocar a criança que tem seis anos só para ela precocemente aprender a ler e a escrever. Isso é escolarizar prematuramente uma criança num sistema falho“, ressalta Arroyo. A qualidade da inclusão também é cobrada como algo fundamental para sustentar essa política.  
 
A educadora Jane Felipe de Freitas, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, avalia a medida com uma ação paliativa. Para ela, o ideal seria oferecer educação infantil de qualidade para as crianças até seis anos. Segundo a educadora, as realidades no Brasil são muito diversas e uma medida nem sempre é boa para todos. “Em Porto Alegre, por exemplo, a ampliação deu certo em um sistema de ciclos da rede municipal. Mas aqui temos planos de carreira para professor. Quase todos da educação infantil têm graduação e até pós. Isso faz a diferença. Em uma escola tradicional, como é a maioria das nossas, o aluno pode ter de passar a maior parte do tempo lendo e copiando frases da lousa para o caderno. Isso é uma agressão“, afirma Jane.  
 
Tornar obrigatórias a matrícula e a freqüência escolar das crianças de seis anos nas instituições de educação infantil seria alternativa para atingir o mesmo objetivo. No entanto, segundo Maria Beatriz, diversas razões foram levadas em conta: há mais escolas de EF do que de EI e elas são mais estruturadas, em termos de instalações, materiais e docentes qualificados. Além disso, a comunidade revela mais compromisso com o EF – que já conta com dispositivos legais de ensino, assim como regras de financiamento prioritário — do que com a EI e o ensino fundamental. 
 

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