Flávia já não sabe mais como fazer a filha ganhar fluência na leitura. Elaine até tenta recuperar no caçula o gosto pelas aulas e Débora se equilibra entre os chamados de um bebê e a rotina de aulas online da filha mais velha. Já se passaram mais de 120 dias e o que parecia provisório virou regra. Com as escolas fechadas por causa do isolamento social imposto pela pandemia do coronavírus, crianças e adolescentes ficaram todo o tempo em casa e os pais relatam prejuízos ao desenvolvimento e a perda de habilidades como fala e leitura.
`Ela simplesmente não quer assistir às aulas online, a professora fala com os outros alunos e ela sai para comer. Fico brava, mas não tem o que fazer`, diz a farmacêutica Flávia Pilon, de 44 anos, sobre Clara, de 6, que tem dificuldade para se concentrar.
A menina tem pré-diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), o que agrava as dificuldades. `É um momento superdelicado porque ela está na fase de alfabetização. Vejo que terá diferença desse aprendizado online em relação ao presencial. Se estivesse na escola, estaria mais avançada.` A leitura, diz a mãe, não é rápida como a dos colegas e Flávia contratou aula particular (também online) para tentar diminuir prejuízos. `Ela sabe ler, mas ainda faltam a fluência e velocidade.`
As repercussões do longo tempo sem aulas presenciais não são apenas impressões das mães. Estudos já evidenciam os impactos para o desenvolvimento das crianças. Os prejuízos vão além da perda de conteúdos e ocorrem também na aquisição de habilidades como interação, cooperação e expressão de sentimentos, principal objetivo das escolas para os pequenos nessa fase.
Pesquisa com 320 participantes de 3 a 18 anos em Xianxim (China), na 2ª semana de fevereiro, apontou que 36% delas apresentavam dependência excessiva dos pais, 32% relataram desatenção e 20% apresentaram problemas de sono. No Brasil ainda faltam pesquisas sobre esses efeitos colaterais da pandemia. Especialistas também alertam para o risco de cobranças desnecessárias pelos pais.
Estresse tóxico. `O que mais pode afetar a criança é o estresse tóxico – períodos prolongados de estresse em que a criança fica sem referencial, preocupada, e ativa mecanismos de defesa. Ela tem de ficar em casa com os pais, preocupados com o risco de pegar a doença ou porque perderam o emprego`, adverte Naércio Menezes Filho, coordenador do Comitê Científico do Núcleo Ciência pela Infância e professor do Insper. Além disso, aumenta o risco de violência doméstica.
Para Enrico, de 3 anos, que entrou na creche no início do ano, mesmo o pouco tempo na escola foi importante para os primeiros passos rumo à autonomia. `Começou a ser mais independente, comer sozinho e se virar. E a entender que a mãe pode sair de perto e depois volta`, diz a esteticista e massoterapeuta Débora Seiryu, de 39 anos.
Desde o início da quarentena, Enrico e a irmã Letícia, de 8 anos, estão confinados com os pais. `A perda foi muito grande. Ele continua a comer sozinho, mas em casa não aceita bem qualquer alimento. Na escola, via amiguinhos comerem juntos e acabava comendo. Em casa, quer mamadeira, doce.` Letícia tem aulas ao vivo, todo dia, de 13h às 16h30. A mãe criou um cantinho de estudos, mas admite ser difícil convencer a menina de que não está de férias.
Insônia. Na casa de Elaine Costa, de 38 anos, estabelecer uma rotina com o filho de 10 anos é um desafio à parte. `Ele tem problema de insônia, o horário para dormir está desregulado. A rotina na escola obriga e lá tem desde o aprendizado à sociabilidade, o bate-papo com a professora, os amigos`, compara.
No 4.º ano do fundamental, Caio tenta se entender com os problemas de multiplicação e divisão, adjetivos, verbos e pronomes. `Ele tinha pegado o gosto pelas aulas, conseguia fazer sem tanto estresse e agora, online, é como se não existisse. Ele não suporta, já tentei várias técnicas`, diz a mãe do menino, diagnosticado com TDAH.
Eduardo Marino, diretor de Conhecimento Aplicado da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, diz que os reflexos podem ser diferentes segundo a condição social. `Para uma criança no último ano da pré-escola, com noções de letramento e família letrada que a estimula, a perda deve ter sido mínima.` Em situação de pobreza, isso muda. `Em uma família em que os pais estão em situação de muito estresse, a pandemia gera impacto para as crianças, de estresse prolongado, que deixa marcas no desenvolvimento mais difíceis de recuperar.`
Uniforme também tem utilidade em casa
Aldenice Melo, de 16 anos, veste o uniforme todos os dias, mesmo sem ir à escola, para se motivar a estudar. De uma comunidade quilombola em Bequimão (MA), ela está matriculada no ensino médio de uma escola federal, fechada por causa da pandemia. A rede de wi-fi chegou à comunidade há pouco tempo e a internet não é das melhores.
`Às vezes, tenho de me deslocar até a casa de amigos, para fazer pesquisas e baixar vídeos. Acordo de madrugada para baixar aulas e vídeos, porque nesse horário a internet fica melhor`, explica a jovem, que já pensou até em desistir dos estudos. `Senti pressão para abandonar. Mas os planos que tenho para meu futuro e da minha comunidade são muito maiores que os desafios.` Aldenice sonha em se formar em alguma área que a ajude a contribuir com a sua comunidade.
O ensino médio já tinha altas as taxas de evasão mesmo antes da pandemia. Na quarentena, as dificuldades de acesso a plataformas digitais e a crise econômica afastam ainda mais jovens vulneráveis da rotina escolar.
Na casa onde mora Isabela Vale, de 19 anos, em uma comunidade da Vila Prudente, zona leste de São Paulo, a internet até chega, mas só a madrasta e o pai têm celular. O aparelho da jovem estragou e falta dinheiro para consertar. Ela já concluiu o ensino médio, mas o pai a estimulou a não parar. `É muito difícil, porque em casa só tem três cômodos e moram cinco pessoas. Não tem espaço para parar, sentar e estudar.`
No início do ano, ela se inscreveu para um cursinho gratuito. Quer fazer o Enem marcado para janeiro de 2021, e seu sonho é estudar Design. Com o isolamento social, porém, as aulas do cursinho foram suspensas.
`Corremos o risco de perder uma geração inteira de adolescentes e jovens`, diz Italo Dutra, chefe de Educação do Unicef no Brasil. `Temos de priorizar o acesso desses meninos e meninas à internet e a construção de currículos para o retorno que tenham comunicação com as necessidades deles.`
Família
O período prolongado em casa com as crianças também tem sido didático para as famílias, que veem a oportunidade de conhecer melhor os filhos e estreitar laços. `Estou acompanhando o desenvolvimento dele e aprendendo a lidar com questões que eu não tinha o domínio pleno`, diz Amanda Torres, de 31 anos, mãe de João Victor, de 4 anos, diagnosticado com autismo.
Antes, ela só estava com o filho à noite. Para Luiz Miguel Martins Garcia, presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação, um bom legado pode ser o vínculo das escolas com a família. `Se mantivermos proximidade maior com a família e parceria para avançar no que se trabalha na escola, a qualidade do estudo em casa será maior.`
Para lembrar
O Ministério da Saúde estuda protocolo de volta às aulas em escolas públicas – só houve até agora retomada em algumas escolas privadas – com orientações para evitar a circulação do novo coronavírus.
A ideia é orientar uso de máscaras, distanciamento social com marcações feitas no chão, criar escala de entrada e saída das turmas, evitar circulação em espaços comuns e realizar refeições dentro das salas de aula. Além disso, reforçar a limpeza e ventilar ambientes.