O impacto da pandemia na defasagem escolar e os cuidados da retomada

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Priscila Cruz, presidente e cofundadora do Todos Pela Educação, é mestre em Administração Pública pela Harvard e, também, membro do Grupo de Estudos de Educação do Instituto de Estudos Avançados da Unicamp. Priscila conversou com a Abrelivros em Pauta sobre os impactos dos dois anos de distanciamento físico dos estudantes da escola, os cuidados necessários para a retomada pós-pandemia e como mitigar a defasagem escolar. Confira na entrevista:

Abrelivros em Pauta – Quais os impactos da pandemia na defasagem escolar?

Priscila CruzÉ difícil analisarmos um retrato final dessa defasagem porque a pandemia continua e o INEP ainda não divulgou os resultados do SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica), mas as redes escolares que já fizeram avaliação de larga escala têm divulgado de forma consistente um retrocesso de 10 anos nos indicadores educacionais e uma queda de 33% da alfabetização no final do segundo ano de pandemia. É inquestionável, portanto, que nós tivemos um prejuízo enorme na educação durante a pandemia, e isso se deve também ao descontrole gerado pelo Governo Federal e à ausência do MEC no apoio financeiro e técnico aos estados e municípios.
A resposta final nós ainda não temos. Espero que o INEP divulgue logo os resultados. Não sou otimista em relação a essa divulgação, não vejo indícios de que esses resultados sejam divulgados antes das eleições.

Abrelivros em Pauta – Já é possível mensurar o tamanho do distanciamento entre alunos que, minimamente, tiveram acesso ao ensino on-line daqueles que, por questões sociais, ficaram completamente sem aulas? É possível de alguma forma reduzir a lacuna criada?

Priscila CruzAumentou a desigualdade porque a capacidade de reação das redes é muito heterogênea no território nacional. Os alunos mais pobres foram mais afetados, já que eles têm menos acesso à internet e muitos ficaram impossibilitados de assistir às aulas remotas. Muitos vivem em situação de carestia e de necessidades básicas à sobrevivência, como moradia e alimentação. Essa heterogeneidade nos efeitos da pandemia na educação fez com que a coordenação nacional tivesse um papel ainda mais importante, mas ela não foi exercida pelo governo.
Se é possível reduzir a lacuna? Eu diria que sim, mas decisões políticas são necessárias. Não há empecilhos técnicos ou falta de clareza em relação àquilo que precisa ser feito, não faltam especialistas que já desenvolveram ferramentas para fazer esse enfrentamento. O que falta é a decisão política pela priorização da educação, porque para recuperar os danos causados pela pandemia, precisamos de um projeto a longo prazo.

Abrelivros em Pauta – Além das perdas cognitivas, o período trouxe danos emocionais. Esse aspecto está sendo levado em consideração pelas escolas na retomada das aulas? De que forma o tema tem sido trabalhado com professores e alunos?

Priscila CruzA resposta para essa pergunta também tem sido muito heterogênea. Uma das possibilidades que está sendo posta em prática em algumas instituições é a intensificação da carga horária em disciplinas como educação artística e educação física. A arte e o esporte, para além da questão cognitiva, são muito importantes para desenvolver nos alunos a autoconfiança, a expressão da criatividade e dos sentimentos, o entendimento do outro etc. Em meu ver, é acertado o aumento da carga horária nessas duas áreas, especialmente acompanhado do aumento para o turno integral. Quanto mais tempo a criança puder ficar na escola, tanto para recuperar a aprendizagem que não aconteceu, quanto para ter uma carga maior de educação artística e física, melhor para a saúde mental delas e dos profissionais da educação.

Abrelivros em Pauta – O que poderá ser feito para mitigar o impacto da defasagem educacional para as crianças que estavam em fase de alfabetização há dois anos? Quais são os possíveis caminhos para minimizar a defasagem de aprendizagem de uma forma geral?

Priscila CruzO primeiro caminho é ter um olhar diferente para o 3º, 4º e 5º anos do Ensino Fundamental 1. Antes da pandemia, esses eram os primeiros anos em que já era pressuposto que as crianças estavam alfabetizadas. Agora o pressuposto é o de que as crianças não estão alfabetizadas nesses anos. A estratégia, então, para a retomada das aulas presenciais é entender que o 3º, 4º e 5º anos do Ensino Fundamental 1 devem ter a mesma atenção à alfabetização do 1º e 2º.

Abrelivros em Pauta – Como a senhora vê a contribuição do livro escolar e dos materiais didáticos impressos e digitais no processo de ensino-aprendizagem nas escolas públicas e particulares de todo o país?

Priscila CruzO livro didático é a materialização da BNCC (Base Nacional Curricular Comum) para o aluno e para o professor. Ele deve, portanto, refletir o momento em que vivemos. É claro que o ciclo de elaboração das obras didáticas no país não previu uma pandemia, mas seria importante que o Governo Federal entendesse que vivemos uma emergência educacional, e que os livros didáticos precisam responder a essa emergência e ser revistos, complementados por outros materiais e outros suportes para que o aluno não acumule mais defasagens ainda. Infelizmente, não temos nenhuma sinalização do Governo Federal de preocupação em relação àquilo que foi perdido em termos de aprendizagem pelos alunos das escolas públicas do Brasil, mas a medida correta seria ter um reforço via PLND (Programa Nacional do Livro e do Material Didático).

Abrelivros em Pauta – Como está sendo a retomada em sala de aula, quais aspectos mais preocupam?

Priscila CruzUm grande desafio é não retomar como se nada tivesse acontecido. Infelizmente, essa postura é recorrente em algumas redes e escolas, e se trata de uma postura equivocada, já que o Brasil teve centenas de milhares de mortos, aumento da fome e do desemprego, crianças e professores com questões graves de saúde mental. Ignorar esse contexto é um equívoco, porque a escola precisa estar preparada para o aluno que chega depois desse período de gravíssimas consequências. Não adianta reabrir a escola como se tivesse passado um período de férias. Deve-se ter um cuidado com a saúde mental dos profissionais da educação e dos alunos, e não podemos ignorar que as tentativas de suicídio e autoflagelamento aumentaram muito.

O clima entre alunos e professores é muito mais difícil hoje, a situação física e emocional é muito diferente e o aumento da pobreza e da fome afeta a importância da merenda escolar, que sempre foi importante e hoje representa uma situação de vida ou morte.

Abrelivros em Paula – Há alguma maneira de recuperar o tempo perdido?

Priscila CruzPara dar maior objetividade ao trabalho de recomposição da aprendizagem, o essencial é focar nos componentes curriculares que são basilares para conteúdos futuros. Esse tipo de revisão curricular, que prioriza o que é fundamental, deve ser o guia no trabalho de recomposição feito pelos gestores públicos.

Abrelivros em Paula – Podemos enxergar algum legado (aprendizado) que período de distanciamento e pandemia deixou para educação?

Priscila CruzSurpreendentemente, a ausência do Governo Federal fez os estados e municípios olharem mais entre si. Um está aprendendo com os erros e acertos do outro. O exemplo de Pernambuco no Ensino Médio, do Ceará na alfabetização e do Espírito Santo na gestão da Secretaria de Educação hoje são guias importantes de trabalho em todos os outros estados. Felizmente, o vácuo deixado pelo Governo Federal foi ocupado por um olhar mais atento dos estados e municípios para as práticas das próprias redes escolares. Sobral, Teresina, Coruripe, Londrina e São Paulo são cases que estão sendo utilizados para a melhoria da gestão educacional de outros municípios. Essa rede de trocas e esse ambiente de disseminação de boas experiências são o grande legado da pandemia na educação pública.

 

 

 

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