Um dos maiores especialistas em políticas públicas voltadas para o livro e a formação de leitores, a ponto de ter a principal legislação na área cunhada com o seu nome, o consultor José Castilho Marques Neto afirma que os avanços promovidos pela Lei 13.696/2018, a chamada Lei Castilho, foram conquistados principalmente pelo empenho da sociedade civil nos últimos anos, em contraposição à falta de iniciativas consistentes na esfera governamental. Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor aposentado da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Castilho aponta como desafio tornar a Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE) uma política de Estado perene. Papel decisivo, em sua opinião, terá a elaboração do novo Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), do qual é um dos consultores e que estará em vigor entre 2024 e 2034. “Hoje temos o mau uso dos meios digitais que nos impôs o fenômeno crescente do isolacionismo, do individualismo proporcionado pelos gadgets eletrônicos utilizados semcritério. As pesquisas demonstram como seu uso indiscriminado está afetando nossas crianças, adolescentes e jovens adultos. Não se trata apenas do futuro da leitura, mas do futuro da humanidade”, diz Castilho, ex-secretário executivo do PNLL, vinculado aos ministérios da Cultura e da Educação, e ex-diretor da Biblioteca Mario de Andrade, da Prefeitura de São Paulo, entre 2002 e 2005.
Como o senhor avalia os avanços até aqui da Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE), instituída em 2018, a partir da Lei 13.696, que leva o seu nome?
Os avanços estão próximos de zero, do ponto de vista da política pública, porque o atual governo partiu de um período anterior destrutivo, teve que reconstruir toda a estrutura do Ministério da Cultura e, ao mesmo tempo, retomar as diretrizes humanistas no Ministério da Educação. Felizmente, 2024 já foi anunciado pelos ministros e seus secretários como o ano de implantação da PNLE e do novo PNLL decenal. Se a paralisia e o desmonte da cultura e da educação nos fizeram retroceder, do ponto de vista da sociedade civil, o que constatamos é que ela tem se organizado para formar leitores e leitoras. Ou seja, seguimos resistindo e avançando.
Por que o brasileiro lê tão pouco, como mostra a pesquisa Retratos da Leitura, do Instituto Pró-Livro? É possível mudar essa realidade? Como?
Tendo a concordar com a conhecidíssima frase do saudoso Darcy Ribeiro: “A crise na educação brasileira não é uma crise, é um projeto!”. O primeiro “por que” é, portanto, político e não apenas um problema técnico ou metodológico que se poderia contornar. Hoje temos o mau uso dos meios digitais que nos impôs o fenômeno crescente do isolacionismo, do individualismo proporcionado pelos gadgets eletrônicos utilizados sem critério. As pesquisas demonstram como seu uso indiscriminado está afetando nossas crianças, adolescentes e jovens adultos. É aterrorizante notar que a capacidade de pensar criticamente se deteriora velozmente e que boa parte das pessoas não detém códigos de comunicação verbal e escrita utilizados pelos mandatários políticos, empresariais, financeiros etc. em plena era da informação e do conhecimento. Precisamos de decisões político-institucionais, investimento maciço em educação e cultura includentes baseadas em políticas de Estado e não de governos. Um pacto social é fundamental para sairmos deste aparente beco sem saída. Não se trata apenas do futuro da leitura, mas do futuro da humanidade. E essa afirmação não tem nada de apocalíptica ou ficcional, basta ler o mundo hoje, como dizia [o educador Paulo] Freire.
Essa mesma pesquisa mostra que a idade em que o brasileiro mais lê é dos 5 aos 13 anos. Como manter a motivação para a leitura na idade adulta?
É o resultado de uma faixa etária quando o brasileiro está mais na escola formal e recebe o material literário adequado (programa tradicional do MEC/FNDE) e, em boa proporção, a orientação de seus mestres. Quando analisamos leitores e não-leitores, temos que pensar na floresta e não em árvores isoladas. Não podemos nos prender em exemplos heroicos ou fracassados de conquistas individuais. A motivação para a leitura virá quando, para além da escola, tivermos bibliotecas vivas que sejam espaços não apenas de leitura, mas de convivência social e artística, de compartilhamento e formação de saberes formais, ancestrais e inovadores que incidam objetivamente na vida das pessoas. Onde os ambientes de trabalho incentivem espaços includentes e coletivos de leitura e lazer, criem clubes de leitura, bibliotecas tradicionais e digitais para seus funcionários.
O senhor é um dos consultores do próximo Plano Nacional do Livro e Leitura, a vigorar de 2024 a 2034. Quais as diretrizes e maiores desafios deste PNLL?
Os maiores desafios, além dos já mencionados anteriormente, incluem reiniciar com um novo PNLL no contexto difícil que estamos atravessando do ponto de vista político, social, econômico e tecnológico e que acontece no Brasil e no mundo. As diretrizes já estão determinadas no corpo da lei da PNLE e, além da questão básica do direito
humano à leitura, se pautam pelos ensinamentos acumulados nos anos de trabalho realizados no Brasil e no exterior sobre este tema, a começar pelos quatro eixos nos quais o PNLL iniciado em 2006 foi construído: democratização do acesso à leitura, principalmente pelas bibliotecas de acesso público; formação de mediadores/as de leitura; incremento do valor simbólico do livro e da leitura; e apoio à economia do livro, representado por escritores, editores, livreiros, distribuidores. Temos o desafio de tornar perene a partir desse governo a ideia de que temos hoje uma política de Estado (lei da PNLE), um plano (PNLL decenal) e, em consequência de ambos, programas/projetos/ações que darão materialidade às diretrizes dos documentos legais e conceituais elaborados democraticamente desde 2006.
Ao defender o papel dos mediadores de leitura, para além da valorização das bibliotecas, o senhor argumenta que ter livros não é suficiente. O incentivo à formação destes profissionais deve ser incluído neste PNLL?
O mundo atual está tão fora do eixo que estamos esquecendo das pessoas, das gentes. Inúmeros estudos atuais de neurolinguistas e educadores nacionais e internacionais demonstram o quanto o domínio da palavra é fundamental para o desenvolvimento do raciocínio das pessoas. Por intermédio da leitura lemos o outro e a nós mesmos, sentindo e raciocinando na produção de um pensamento próprio. A relação é, portanto, entre seres humanos antes de tudo. No processo de construção da pessoa leitora é fundamental existir outra pessoa cujos papéis são múltiplos e variados. A mediação começa entre gente que gosta de gente e se expressa também, e muitas vezes prioritariamente, nos profissionais da educação e da cultura, como os docentes e os bibliotecários e agentes culturais. É preciso sim, o incentivo à formação desses profissionais, tanto do ponto de vista de remuneração adequada, quanto da formação propriamente dita, com cursos e orientações permanentes para reciclar algo que é vivo e mutante, a palavra escrita e falada.